Dossiê Irmandades - Catolicismo e ascensão social dos libertos africanos

Catolicismo e ascensão social dos libertos africanos: o caso da Irmandade da Redenção na capela do Corpo Santo
Luis Nicolau Parés*
As irmandades católicas de homens negros constituíam importantes espaços de sociabilidade africana no Atlântico lusófono, em particular, no Brasil. Era comum os africanos libertos mais abastados pertencerem a várias irmandades, o que lhes conferia prestígio e visibilidade social, em vida, ao participar das procissões e festas anuais, e na hora da morte, quando essas sociedades acompanhavam seus cortejos fúnebres e tomavam conta dos enterros. Por isso, no testamento, o africano fazia questão de nomear todas as suas irmandades, solicitando-lhes missas pela sua alma e as das pessoas mais queridas e, às vezes, fazendo-lhes legados de esmolas e outros bens. Examinando os testamentos dos africanos falecidos na cidade de Salvador, na primeira metade do século XIX, as três irmandades mais citadas pelos testadores, portanto as mais populares e concorridas, eram a de Nossa Senhora do Rosário da Baixa de Sapateiros, a de São Benedito no convento de São Francisco e a do Bom Jesus das Necessidades e Redenção, na capela do Corpo Santo 1. Neste texto, apresento algumas informações sobre esta última que, embora pouco conhecida, apresenta características nas suas atividades e composição social que a distinguem das demais.
Nos seus primórdios, a confraria funcionou como uma “devoção” de africanos jejes que, em 1774, instalou a sua imagem do Bom Jesus das Necessidades e Redenção num altar lateral da capela do Corpo Santo (perto do atual elevador Lacerda, numa das esquinas da Praça Cairu) 2. Essa capela, também conhecida como de São Frei Pedro Gonçalves, estava dedicada a São Telmo, foi construída em 1694 e era de marinheiros. Na década de 1730, houve uma tentativa frustrada de fundar, em volta dela, um hospital marítimo e, entre 1738 e 1765, funcionou como matriz da freguesia da Conceição da Praia, quando a igreja principal estava sendo reconstruída. Os devotos do Bom Jesus da Redenção redigiram o seu compromisso em 1775 e ele foi aprovado pelo Tribunal da Mesa da Consciência e Ordem, em Lisboa, em agosto de 1778, e pelo rei, em setembro. Desse modo, a agremiação foi reconhecida oficialmente como irmandade 3.
Um dos aspectos mais comentados em relação às confrarias de homens pretos diz respeito a etnicidade dos seus membros. Frente a predominância dos angolas e crioulos em muitas irmandades de Nossa Senhora do Rosário, a irmandade da Redenção (doravante IBJNR) é lembrada pela predominância étnica dos jejes 4. Essa nação incluía os povos falantes das línguas gbe, provenientes da Costa da Mina, na África ocidental, na região sob a influência do reino do Daomé, hoje correspondente aos países do Togo e Benin. Contudo, o compromisso de 1775 estipulava que “serão admitidos para irmãos, e irmãs os pretos nacionais da Costa da Mina, ou Luanda, excluindo da sua congregação os crioulos desta cidade, ou de outra qualquer parte” 5. Assim, mesmo que desde a fundação até a década de 1830, a mesa diretora da IBJNR estivesse controlada pelos jejes, não existia um separatismo étnico absoluto e, em alguns casos, nagôs e angolas, e inclusive algum branco ou pardo, foram admitidos como irmãos. A política de exclusão mais forte se aplicava aos crioulos, segundo os irmãos africanos, para evitar os conflitos e as controvérsias que se davam entre os pretos nascidos no país e aqueles de ultramar 6. De fato, as tensões étnico-raciais entre os membros da irmandade se sucederam ao longo de toda sua história, até inícios do século XX, quando deixou de funcionar 7.
Contudo, desde sua fundação até a década de 1830, a IBJNR agregou a sua volta alguns dos libertos africanos mais prósperos da cidade, naquele então predominantemente jejes e minas. Essa elite, embora de forma precária e instável e sempre sujeita à exclusão política, constituiu o que poderíamos chamar de embrião de uma pequena “burguesia negra” em Salvador. Diante das representações das irmandades de homens pretos como agremiações preocupadas com a assistência aos enfermos, a organização das exéquias e a alforria de seus membros, a IBJNR aparece como uma sociedade, efetivamente de ajuda mútua, mas orientada, sobretudo, a satisfazer os interesses dos mais bem sucedidos. Havia entre seus irmãos um número expressivo de membros das milícias negras, como a dos Henriques, e de capitães de entradas e assaltos, os temidos capitães de mato.
A convergência da elite militar negra com a elite da irmandade, nas primeiras décadas de sua história, permite supor que a associação foi, em parte, resultado da iniciativa e do espírito corporativo desse grupo profissional. Outra característica marcante é que vários desses capitães e milicianos também atuaram como barbeiros, geralmente no início de suas carreiras. No Brasil colônia, os barbeiros podiam exercer funções de cirurgiões ou médicos, obtendo licença para “sangrar, sarjar, lançar ventosa e sanguessugas” e alguns deles atuavam nos navios negreiros, como agentes de saúde informal. Havia inclusive aqueles que combinavam suas funções militares e habilidades de barbeiro com a de regentes ou mestres de bandas de música de barbeiro. Essas bandas acompanhavam as irmandades nas procissões, nas festas anuais, na petição de esmolas, nos cortejos do viático etc 8. Em 1808, por exemplo, a cúpula da IBJNR, reunia os principais proprietários de bandas de barbeiro da cidade.
Além de milicianos, barbeiros e músicos, havia entre os irmãos, marinheiros, sapateiros, comerciantes e outros artesões. Quando os libertos conseguiam acumular alguma riqueza, eles a investiam primeiro, como era comum entre os livres também, em escravos e depois na compra de bens imóveis. Assim, muitos dos irmãos da IBJNR eram donos de escravos, às vezes em números respeitáveis. Havia, inclusive, alguns que participaram, de forma direta ou indireta, no tráfico atlântico de pessoas. Na virada do século XIX, há indícios de alguns irmãos jejes atuando nesse negócio em Benguela, mesmo que em pequena escala, e de outros, na década de 1820, investindo na Costa da Mina, quando o tráfico já era ilegal 9. A participação, certamente excepcional, desses africanos no negócio capitalista mais lucrativo do momento indica sua habilidade comercial e capacidade de ascensão social. Sua reunião em volta da IBJNR, ao longo de mais de três décadas, sugere que a confraria, para além da devoção religiosa e o trabalho assistencial, podia esconder outras atividades e interesses pecuniários.
A irmandade constituía uma rede social de apoio logístico para resolver assuntos deste mundo, como processos judiciais e prestação de contas. Mas ela também servia para especular com o fluxo financeiro, intermediando empréstimos e outras transações. Por exemplo, num termo que acom¬panhava o compromisso original, datado em 13 de abril de 1776, os irmãos se obrigavam a prestar contas à Provedoria dos Resíduos e Capelas e a não reeleger tesoureiro, nem “darem dinheiros a juros.” 10 A imposição desse termo sugere que a agiotagem era uma das dinâmicas que as autoridades pretendiam controlar. Outra área de investimento das irmandades era o patrimônio imobiliário. Na IBJNR há indícios de uma primeira doação de um imóvel por parte de um irmão na década de 1810 e, em 1853, a sociedade era proprietária de três casas. Já a irmandade do Rosário da Baixa de Sapateiros, para citar a mais rica dentre aquelas de africanos, possuía treze casas e cinco terrenos na cidade. 11 Essa economia imobiliária que funcionava por trás das atividades religiosas confere a essas associações assistenciais uma dimensão patrimonial e corporativista.
Cabe, assim, destacar a dinâmica econômica subjacente às relações de poder e clientelismo que teciam a sociabilidade da instituição e suas atividades religiosas. Para além de um mero cenário de promoção social e de expressão da identidade cultural das elites negras, as irmandades podiam funcionar como redes facilitadoras de alianças e cooperação intraétnica, comparáveis aos grupos de interesse, ou lobbies, que atuam no competitivo e dinâmico sistema capitalista. As irmandades podem ser caracterizadas, assim, como espaços de solidariedade ao serviço de interesses coletivos africanos e, nesse sentido, cabe falar de uma apropriação ou africanização da instituição.
Nesses espaços, se expressavam de forma singular e emblemática processos simultâneos de adaptação cultural aos modos das elites brancas e de preservação de interesses e costumes africanos. Essa dupla articulação, em aparência paradoxal, entre o abrasileiramento e a africanização, entre a assimilação e a resistência, era característica fundamental dos processos de ascensão social dos libertos. A própria adesão à fé católica, por exemplo, pode ser interpretada como um mecanismo de inserção na sociedade colonial, não necessariamente envolvendo uma “conversão” que repudiava o universo religioso africano, mas como a adoção de um código e uma imagem pública percebidos como requisito imprescindível para participar das redes sociais que possibilitavam a almejada ascensão social. Em outras palavras, a conversão ao catolicismo pode ter funcionado como uma marca de prestígio que legitimava a inclusão dos libertos no círculo de seus patronos e no mundo do trabalho especializado, ou, num outro nível econômico, como condição necessária para a participação nos negócios da comunidade mercantil mais ampla.
Como aponta Maria Inês Cortes de Oliveira, “os africanos utilizavam a linguagem da cultura dominante para adquirirem o direito de expressar seus interesses”. 12 Talvez possamos falar de um processo de ladinização, no sentido de uma tentativa de apropriar-se dos códigos e comportamentos do senhor – não apenas culturais, mas também comerciais – para melhor controlá-los e tirar deles partido em beneficio próprio. 13 Ora, ao lado da interação com os “patronos”, dos quais amiúde aprendiam os ofícios ou comercio, parte importante do sucesso social dos libertos devia-se a sua paralela cooperação com seus pares africanos, principalmente nas irmandades. Como vimos, essas sociedades propiciavam uma relativa autonomia administrativa favorável à perpetuação de línguas e hábitos africanos e, no caso da IBJNR, à articulação de interesses econômicos e profissionais de diversas ordens.
Diante da aparente democratização das irmandades de Nossa Senhora do Rosário, aceitando membros de diversos status legais e condições econômicas, o ethos da IBJNR, com alta densidade de milicianos, capitães e senhores de escravos, parece ter preservado, ressalvando as distâncias, o caráter mais fechado e aristocrático das velhas irmandades ibéricas. Nestas, “o estatuto social e profissional constituía um critério determinante” e, quem sabe, na irmandade da Redenção não se preservasse certa dinâmica seletiva, pelo menos na esfera da mesa diretora, em virtude das afinidades étnicas e das atividades profissionais e comerciais de seus membros. 14 Como vimos, a identidade étnica jeje não era condição necessária para o ingresso na sociedade, mas ela funcionava como um importante elemento facilitador. Por outro lado, na dinâmica associativa da confraria, a lógica corporativista baseada na afinidade profissional e mercantil pode ter prevalecido sobre a lógica étnica ou religiosa.
Em definitivo, como já avisara Roger Bastide, sob formas de aparente aculturação escondiam-se formas de contra-aculturação. 15 Utilizando termos mais atuais, poderíamos dizer que as irmandades de homens pretos constituíam um espaço simultâneo de ladinização e de africanização. Havia assimilação no sentido de replicar um modelo preexistente associado ao catolicismo dominante, mas essa acomodação era também apropriação estratégica que abria espaço para concorrer na dinâmica do mercado e para poder encenar, na esfera pública, o teatro social e político que podia promover oportunidades aos africanos.
Luis Nicolau Parés é antropólogo e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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1 Dados da pesquisa da professora Maria Inês Cortes de Oliveira, generosamente cedidos ao autor.
2 Biblioteca da Igreja da Conceição da Praia, Salvador, papeis avulsos, termo de 28/08/1774.
3 Para uma análise mais detalhada da história da irmandade da Redenção, ver o artigo do qual foram extraídas partes deste texto: Luis Nicolau Parés “Milicianos, barbeiros e traficantes numa irmandade católica de africanos minas e jejes (Bahia, 1770–1830),” Revista Tempo, n 20, 2014, pp. 1-32.
4 Por exemplo: João da Silva Campos, Procissões tradicionais da Bahia, Salvador, Conselho Estadual de Cultura, 2ª edição revista 2001 [1941], pp. 265-66; Pierre Verger, Fluxo e Refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de todos os Santos, São Paulo, Corrupio, 1987 [1968], p. 525.
5 Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador (doravante ACMS), Est.1; Cx. 32; Cx. Arq. 162-As1; doc. 38 “Bom Jesus das Necessidades e Redempção”, Lisboa, Oficina de Antonio Rodrigues Galhardo, Impressor da Real Meza Censoria, 1778.
6 Para uma análise das controvérsias entre africanos e crioulos nessa e outras irmandades: João José Reis, “Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão”, Tempo, vol. 2, n. 3, Niterói, 1996, pp. 15-17; Luis Nicolau Parés, “O processo de crioulização no Recôncavo baiano (1750-1800)”, Afro-Ásia, n. 33, 2005, pp. 97-103.
7 Silva Campos, Procissões, pp. 265-66.
8 Ver, por exemplo, Marieta Alves, “Música de barbeiros”, Revista Brasileira de Folclore v. 7 n° 17, 1967, pp. 5-13.
9 Parés “Milicianos”, pp. 10-14, 27-29.
10 ACMS, Est.1; Cx. 32; Cx. Arq. 162-As1; doc. 38 “Bom Jesus das Necessidades e Redempção”, Lisboa, Oficina de Antonio Rodrigues Galhardo, Impressor da Real Meza Censoria, 1778.
11 Arquivo Público do estado da Bahia, Salvador, Colonial, maço 5266, “Livro do Tombo dos bens de todas as Ordens Terceiras, Confrarias e Irmandades da Cidade do Salvador em 1853”, ff. 62, 69-71v.
12 Maria Inês Cortes de Oliveira, O liberto: o seu mundo e os outros (Salvador, 1790–1890), Salvador, Corrupio, 1988, p. 74.
13 Para uma interpretação do conceito de ladinização ver João José Reis, Domingos Pereira Sodré: um sacerdote africano. Escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX, São Paulo, Companhia das Letras, 2008, pp. 316-317.
14 A citação é de Didier Lahon, O negro no coração do Império. Uma memória a resgatar, séculos. XV-XIX, Lisboa, Colecção Entreculturas, 1999, pp. 59-60.
15 Roger Bastide, Sociología de la religión, Madrid, Ediciones Jucar, 1986.