Dossiê Irmandades - Repensando a irmandade negra na sociedade colonial

Repensando a irmandade negra na sociedade colonial*
Renato da Silveira**
As irmandades negras brasileiras têm sido interpretadas por muitos estudiosos influentes como “instrumentos” de conservação da ordem colonial, meras formas de enquadramento da massa escrava pela política estatal e eclesiástica. Nos anos 40 os pesquisadores criaram e nas décadas seguintes aperfeiçoaram a versão canônica: as irmandades afro-brasileiras teriam sido étnicas porque assim foram organizadas pela Igreja para facilitar a catequese, e pelo Governo ao aplicar uma máxima das artimanhas da dominação: dividir para reinar. Os colonizadores portugueses teriam sido beneficiados pela ingenuidade política dos africanos escravizados, entretendo-os com solenidades pomposas e cargos carnavalescos em associações lançadas umas contra as outras em competições estéreis, assegurando assim os privilégios da população branca minoritária.
Considerada, contudo, como “instrumento”, a irmandade leiga tem conceitualmente depreciado o seu caráter de instituição: seu importantíssimo papel de fundamento social durante séculos, em todas as sociedades cristãs, desaparece no momento da interpretação, ao se propor um conceito de organização social como mera ferramenta, algo monolítico e estático que pode ser manipulado ao bel prazer dos poderes dominantes. Porém, como na sua longa trajetória através da história da Europa, pagã como cristã, a irmandade de leigos preencheu diversas funções sociais importantes e envolveu-se em vários tipos de conflito, melhor seria pensá-la como uma das modalidades de organização, não só da base social do Antigo Regime, como do movimento político, simultaneamente de conservação e de contestação da ordem estabelecida.
Nas três últimas décadas uma reação vem entretanto sendo esboçada contra aquela caricatura, bons pesquisadores de diversas origens têm trazido fartas contribuições ao conhecimento do quadro escravista brasileiro, em todos os níveis, particularmente sobre as irmandades negras, as “nações africanas”, a cultura e as religiões afro-brasileiras, as lideranças negras, sua influência na festa colonial, daí decorrendo uma grande quantidade de dados disponíveis, um panorama muito mais vasto e estimulante se descortinando diante dos olhos do interpretador.
Sob este prisma poderíamos pensar que, ao ingressar (voluntariamente, diga-se de passagem) numa irmandade negra brasileira, o africano estava integrando-se a uma organização oficial destinada às classes consideradas inferiores, podia eleger seus dirigentes, participar dos desfiles cívicos constitucionais, integrando-se de modo subalterno à vida política da colônia. Porém, a composição dessas instituições era muito variada, não existem exemplos de irmandades puramente étnicas, vários tipos de divisão de poder e de aliança foram tramados, mostrando que o africano transplantado manteve na terra do cativeiro sua capacidade de mobilização, de organização. Um sujeito, portanto, não mais essencialmente apático, tal como quer a história oficial, mas ativo, alternativamente qualificado, capaz de tomar diversas iniciativas.
Hoje podemos pensar, com mais profundidade, que a irmandade de leigos foi uma das principais organizações de reprodução da sociedade oficial na Europa & colônias; preencheu, durante dois milênios e meio, funções funerárias, assistenciais, sindicais, econômicas e financeiras, terapêuticas e recreativas, sem seu funcionamento a vida social teria sido impossível. Nela floresceu além do mais uma cultura cívica, o hábito do voto, a rotatividade nos cargos de direção, como também a luta interna pelo poder e as complicadas negociações habituais nos organismos democráticos. Mas também foi um espaço de oposição política, base operacional de onde foi possível reivindicar direitos, organizar lideranças alternativas, traçar alianças, manter uma vida semiclandestina e até mesmo apoiar rebeliões contra a ordem estabelecida. Tal associação foi, portanto, uma precursora, tanto da organização burocrática moderna, quanto do que chamaríamos hoje de sociedade civil. Em uma palavra, já estava passando da hora da irmandade negra deixar de ser teórica e historiograficamente tão relegada.
Porém, na hora da generalização, dois tipos de deficiência teórico-metodológica continuam provocando desencontros entre muitos pesquisadores da realidade brasileira. Por um lado temos a fragmentação das disciplinas acadêmicas e os recortes promovidos pelos programas de pós-graduação, que separam aquilo que, no movimento da realidade, está indissoluvelmente ligado. O efeito analítico, útil em certas circunstâncias, termina por impor cisões arbitrárias, empurrando para campos de estudo diferentes aquilo que no movimento da sociedade é uma coisa só.
Por exemplo, importantes pesquisas recentes sobre nosso sistema político colonial têm priorizado o que a filosofia clássica denomina de “esfera da política”, ou seja, o Estado, o Governo, os partidos políticos e as instituições da administração pública; e, no nosso caso, a religião oficial, com toda uma gama de funções político-jurídico-administrativas importantes. Por essa vereda tropical grandes avanços foram feitos: hoje conhecemos com detalhes o funcionamento, os valores, as hierarquias e ideologias recorrentes nessas instâncias, suas lacunas e múltiplas contradições internas... Mas pouca ou nenhuma atenção tem sido dada a suas relações com as organizações segmentadas da população, particularmente com as “nações” africanas e as irmandades negras, forjadoras de lideranças e legitimadoras das instâncias básicas de exercício dos poderes coloniais...
Por sua vez os estudos desenvolvidos sob a etiqueta da cultura, particularmente sobre a festa africana no Brasil colonial, bem como a antropologia das religiões afro-brasileiras, salvo raríssimas e honrosíssimas exceções, também não têm dado atenção à nação africana ou à irmandade leiga enquanto aspectos propriamente fundamentais da estrutura política do Império Português.
Uma segunda deficiência teórico-metodológica vem à tona quando teorias elaboradas por grandes intelectuais do hemisfério norte, os inventores das novas problemáticas, são, numa espécie de neocolonização dos espíritos, avassaladoramente introduzidas na pesquisa brasileira sem maiores cuidados, tornando-se imposições programáticas que têm levado a interpretações delirantes da nossa realidade. Os temas da “imaginação”, da “invenção de tradições” e do “grupo étnico e suas fronteiras”, apesar das suas importantes contribuições, têm sido apressadamente aplicados à realidade brasileira, sem que seja levada em consideração a especificidade de cada contexto. Assim, acervos importantes de dados empíricos têm frequentemente recebido interpretações preocupadas sobretudo em não desobedecer as modas acadêmicas. Do mesmo modo, a importância crescentemente atribuída ao movimento, ao caráter instável da sociedade e à integração sincrônica entre seus atores, vem sendo acompanhada de uma imperdoável depreciação das estruturas sociais e das tradições culturais, sem as quais nenhuma sociedade poderia existir, gerando uma espécie de circunstancialismo raso, que ganha em agilidade, mas perde em profundidade.
O estudo de uma instituição plurifuncional como a irmandade de leigos, do seu papel na estrutura política do Império Português, sua relação com a cultura, com a economia, com a contestação escrava, com a religiosidade europeia, a indígena e a africana, exige uma abordagem necessariamente multidisciplinar. Isso implica algumas exigências teórico-metodológicas imediatas: ampla diversidade de fontes, rompimento das barreiras disciplinares e bibliografia muito variada. Assim estaria aberto o caminho para uma nova síntese, reunindo-se o vasto material disponível sob enfoques mais abrangentes, concebendo-se um modelo de sociedade colonial no qual a irmandade de negros deixe para trás o suposto papel de ferramenta de manipulação pelos poderosos e ocupe o lugar destacado que efetivamente desempenhou na nossa história.
*A expressão ‟sociedade colonialˮ aqui utilizada abarca tanto o período colonial quanto o imperial. Depois do Grito do Ipiranga vários dos elementos estruturais da sociedade montada pelo colonialismo português foram mantidos: dependência política a uma monarquia alienígena, estratificação social e racial, economia de monocultura voltada para o mercado externo, dependência financeira às potências estrangeiras, mão de obra escrava, sistema policial despótico, religião oficial, irmandades leigas como fundamento social. Esse quadro só foi se extinguindo aos poucos, até a beirada do século XX, pois uma sociedade não acaba por decreto.
** Renato da Silveira é antropólogo, artista plástico e professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA)