NOTÍCIAS DO 2 DE JULHO: O CENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA BAHIA
O 2 de julho, que marca o fim do processo emancipatório do Brasil, é episódio característico e fundamental da História da Bahia como um todo e da cidade de Salvador, em específico. Tema amplamente estudado, discutido e revisitado, a Independência do Brasil na Bahia não pode passar despercebido, por quem se interessa pela trajetória política do país, principalmente quando perto de comemorar mais um ano. Mais ainda quando próximo ao bicentenário. Essa exposição, no entanto, trata especificamente das notícias veiculadas pela imprensa baiana no ano em que se comemorou o Centenário da Independência do Brasil, traçando um paralelo entre um projeto nacional de construção da nacionalidade brasileira baseada no 7 de Setembro e da narrativa baiana que defende o 2 de Julho como data fundamental da Independência do Brasil.
Um Breve Histórico
Desde a chegada da família real portuguesa no Brasil, a então colônia, passa a experimentar diversas mudanças estruturais – a escravidão permanecia intacta – em diversos setores da sociedade. Com isso, o desejo de cortar os laços coloniais que ainda prendiam o país à metrópole crescia cotidianamente. Em 1820, com a volta forçada de D. João VI à Portugal e posterior recusa do Príncipe Regente D. Pedro em retornar ao seu país de nascença, o movimento separatista toma fôlego.
Durante muito tempo a maior parte da população brasileira acreditou que o processo de Independência do Brasil, muito influenciado pelo que era lido nos livros didáticos, se deu de forma pacífica, quase que um consenso geral e libertador. A imagem de Pedro I, às margens do rio Ypiranga, na província de São Paulo, declarando a Independência em 7 de setembro de 1822, ficou na cabeça dos brasileiros como marco inicial e final desse processo. Hoje sabemos que não foi bem assim. Processos de ruptura, historicamente, vêm acompanhados de luta, de violência, de conflitos bélicos. Por que no Brasil, ainda em formação de sua identidade, seria diferente?
Após a proclamação simbólica e quase freudiana de D. Pedro em sete de setembro de 22, começou, de fato, as lutas pela independência, principalmente no nordeste brasileiro. A Bahia, que já havia decretado apoio incondicional à D. Pedro já em junho de 1822, foi palco das maiores e mais sangrentas batalhas pela independência.
Exemplo disso foi a Batalha de Pirajá, bairro antigo de Salvador que surge a partir dos engenhos de açúcar ainda no período da colonização, considerada o principal combate pela Independência, ocorreu na madrugada de 8 de novembro de 1822. Liderado pelo general francês Pedro Labatut o exército pacificador lutou contra as forças portuguesas, lideradas por Madeira de Melo, durante oito horas, num conflito que envolveu entre 2.500 a 4.000 pessoas. O triunfo do exército pacificador contribuiu com a Independência da Bahia em 2 de julho de 1823. Dia em que as tropas lusitanas deixam definitivamente a Baía de Todos os Santos. Depois de mais de um ano de sangrentas batalhas o povo poderia, finalmente, comemorar o fim do domínio português nas terras do Brasil. A guerra de independência na Bahia teve uma mobilização sem precedentes e tocou todos os setores da sociedade. Em comemoração a Independência do Brasil na Bahia as tropas brasileiras entram triunfantemente pelas ruas da cidade do Salvador fato que é comemorado até os dias atuais.
A Festa
As comemorações do 2 de Julho, que marca a independência do Brasil na Bahia, ajuda a lembrar ao povo que só a luta garante a liberdade, direitos e vida digna. O cortejo do Dois de Julho sai do Largo da Lapinha com destino à Praça do Campo Grande, arrasta-se pelo referido trecho da cidade com os seus carros alegóricos e leva a população baiana para conhecer a sua própria história a partir dos monumentos urbanos. Os monumentos que recebem o cortejo e contam a história da Independência da Bahia são o Busto do General Labatut, a Estátua de Maria Quitéria e o Monumento ao Dois de Julho. Talvez por isso, o 2 de Julho seja comemorado, festejado tão fortemente na Bahia. Segundo o historiador Hendrik Kraay o
“2 de Julho é algo sui generis. É uma festa que não há igual no mundo. Não conheço nenhuma outra festa cívica que combine múltiplos aspectos que vão do civismo oficial, ao lúdico, o carnavalesco, ao popular, ao religioso”.
Nos festejos pode-se encontrar todo tipo de pauta, movimentos sociais, sindicatos, estudantes, que resgatam anualmente o viés de luta que envolve o processo de independência. Além disso, tem música, samba, suor e cerveja. São todos os signos ao mesmo tempo, num mesmo lugar. O 2 de Julho fala do Brasil, embora seja uma festa baiana.
Notícias do Centenário e a construção da nacionalidade
Em 1922, ano que marca o centenário de Independência do Brasil, o então presidente Epitácio Pessoa cria uma comissão para organizar as celebrações do 7 de setembro em todo país. Segundo o professor Paulo Rogério Sily os objetivos do presidente eram
construir uma imagem do Brasil que fosse motivo de orgulho dos brasileiros, estimulando e fortalecendo laços de nacionalidade e de pertencimento em uma população heterogênea e servir de propaganda das potencialidades nacionais e de atrativo para aqueles que, em nações estrangeiras, tivessem interesses em expandir negócios, estabelecer relações comerciais e/ou realizar investimentos no Brasil, em tempos de reconstrução da economia mundial no pós Primeira Grande-Guerra (1914 – 1919).
As festas e comemorações aconteceram, dentre as atividades programadas fora lançada a pedra fundamental da construção de Brasília – que só terminaria em 1960 – a inauguração do Museu Histórico Nacional, sediado no Rio de Janeiro, então capital federal, além de festas populares em diversas cidades brasileiras exaltando a pátria.
Mas na Bahia a história foi um pouco diferente, conforme o professor Gerson Ledezma, a Bahia, a priori, recusou o projeto de comemorações do centenário da Independência proposto pelo então presidente Epitácio Pessoa e a construção de uma memória que ligava a Independência somente ao grito do Ypiranga . Para o baianos a data que deveria ser de fato comemorada era em 2 de Julho de 1923, marco que representa o fim desse processo, que também fora iniciado na Bahia, em 25 de junho de 1922. Nesse sentido a Bahia dá o ponta pé inicial e encerra esse ciclo de lutas.
As comemorações, desfiles, parada militar e honrarias, de fato ocorreram na cidade da Bahia, mas a todo o momento a imprensa dava sinais de que a real comemoração se daria quase um ano depois. Ainda em julho de 1922, alguns jornais já dão conta de que o 2 julho de 1923 seria, de fato, a data do centenário da Independência, como destacou "O Democrata" em 2 de julho de 22 se referindo à data como "vitorioso epílogo" sem a qual a Independência não teria sido concretizada
Os jornais da época cobriram os festejos do 7 de setembro na Bahia já convocando a população para as celebrações do 2 de Julho no próximo ano. Como podemos notar na matéria veiculada pelo jornal Diário da Bahia em setembro de 1922 onde noticia as festejos em Salvador:
O professor Alípio Franca, em artigo publicado na capa do jornal "Diário de Notícias", faz a defesa da memória baiana com tom ainda mais acirrado, escreveu ele "A César o que é de César: ainda que se pense em tirar da Bahia tudo aquilo que conquistou, aquilo que te pertence, "jamais seria possível, pois a justiça da história aí está para afirmar que no pedestal da glória, onde se erige a coluna memorável da nossa emancipação política, a Bahia ocupa, com muita justiça, a cúspide do monumento"
O jornal "O Imparcial" estampou sua capa, em 7 de setembro de 22, publicou em sua capa com o título "Um século de Independência. Bahia aos heróis de 1823" em contundente alusão ao 2 de Julho e às guerras por aqui travadas. Junto à matéria uma enorme imagem do Monumento ao 2 de Julho, que seria utilizada, pelo mesmo jornal, quando essa data chegasse em 1923
Ainda depois do 7 de setembro houveram matérias explicitando, ainda mais, o protagonismo dos baianos. Como fez o jornal "Diário da Bahia" em artigo publicado 10 de setembro de 1922. Fica evidente que, os jornais, a imprensa baiana, muito embora o estado tivesse festejado com grande civismo a Independência do país em setembro, negou veementemente o projeto de construção de uma memória coletiva pautada dentro de uma perspectiva de nacionalidade que fora inventada ao longo do século XIX. Para o jornais baianos o fato é que a Bahia completou a obra do Ypiranga
Em 12 de setembro de 1922, "O Democrata", novamente, traz matéria de capa em que trata e descreve minuciosamente os festejos em torno do 7 de setembro. Destacando, ainda mais, que no ano seguinte a Bahia iria de fato, alinhavar com seu desfile, festejos a "verdadeira Independência"
Além dos jornais, revistas da época também noticiaram as comemorações ao 7 de setembro seguindo a mesma linha editorial que encontramos em todos os jornais. A revista "Renascença" trouxe grande artigo pontuando que os festejos terminaram no Monumento ao 2 de Julho e ainda cravou: "no ano por vir, a Bahia a quem coube a tarefa de libertar o Brasil do jugo das cortes de Lisboa, a preço de muito sangue e lágrimas sem conto, celebrará o primeiro aniversário de sua emancipação definitiva. O dia da Liberdade será sempre, para ela, 2 de Julho de 1823
Além da revista "Renascença" a "Revista da Bahia" teceu duras críticas ao Centenário em torno do 7 de Setembro além de críticas ao presidente Epitácio Pessoa o acusando, entre outras coisas, de corrupção generalizada. Segundo o artigo, era uma vergonha festejar em estado de sítio, sem garantias constitucionais ao povo
“Povo, este dia é teu podes saudá-lo”
Segundo o professor Ledezma comemorar o 2 de Julho e não o 7 de setembro significava o “poder de Davi contra Golias na pretensão por estabelecer uma memória coletiva”
Com antecedência as ruas e praças da cidade de Salvador começaram a ser enfeitadas e cuidadas para dar passagem ao desfile centenário de 2 de Julho de 1923; os jornais mencionaram todos os projetos da Prefeitura e das pessoas particulares que lutaram para dar o maior brilho possível à festa
As ruas, bairros e casarões onde o desfile passaria foram reformados e replanejados, a rua da Lapa, agora tinha o nome de Joana Angélica, abadia morta à porta do convento quando defendia os soldados atacados pelos portugueses. Todos, aparentemente, estavam imbuídos em transformar o centenário do 2 de Julho marco na história do estado e por conseguinte, do país. A matéria de capa do jornal "O Democrata" em 2 de Julho de 1923 prova isso
Todos os jornais estamparam em suas capas odes à pátria, hinos, estrofes, alegorias, fotografias das heroínas da Independência, especialmente Maria Quitéria e Joana Angélica. Como afirma Ledezma
Vários monumentos levantados, desde Cachoeira, passando por Itaparica, até Salvador. O monumento ao 2 de Julho foi honrado com visitas, romarias e muitas flores. O grandioso cortejo cívico e militar partiu da Lapinha até chegar ao Campo Grande. É interessante mostrar a forma como a Bahia recriou o 2 de Julho e sobre-dimensionou os fatos em torno da sua Independência, que para ela era a Independência do Brasil.
Nem mesmo o tempo chuvoso impediu que as pessoas estivessem na rua, “o sol do Dois de Julho só não brilhou ontem no céu, fulgurou, radioso, nos corações. Que importavam o mau tempo, se todos traziam consigo o calor das grandes emoções” estampou no primeiro parágrafo do artigo o jornal “A Tarde” um dia depois dos festejos
O jornal “O Imparcial” traz em destaque a figura do Caboclo matando a serpente da tirania, na praça 2 de Julho, no Campo Grande, símbolo central dos festejos da Independência da Bahia que remonta as origens populares da nação brasileira.
Segundo o professor Milton Moura o caboclo e a cabocla são as representações indígena e africana na festa. Para a professora Wlamyra Albuquerque “a familiaridade simbólica entre as entidades do candomblé e os símbolos da Independência leva-nos a pensar sobre a complexidade dos cruzamentos culturais que ganhavam nitidez nas comemorações do Dois de Julho”. É interessante pensar que em um país machista e racista como o Brasil os maiores símbolos da Independência sejam três mulheres – nas figuras de Maria Felipa, Maria Quitéria e Joana Angélica – e dois caboclos que evocam à origem indígena do país e ao mesmo tempo traz a religiosidade de matriz africana. Esse é mais um contraste se comparado ao 7 de setembro, onde não há mulher, não há negro, não tem povo.
A festa do 2 de Julho, desde o início, foi palco de disputa de narrativas. A presença popular sempre esteve permeada pela busca de liberdade, pela conquista de direitos, pelas pautas sociais. E claro, junto a tudo isso a festa, o desbunde, o exagero. Está aí a diferença primordial da construção da memória coletiva em torno das duas datas, 7 de Setembro e 2 de Julho, e talvez seja por isso que o 2 de Julho seja uma festa sem igual, por que nela há gente. A Bahia, como Gilberto Gil defende, sempre deu régua e compasso.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeira de. Algazarra nas ruas: comemorações da Independência na Bahia (1889-1923). Campinas: UNICAMP, 1999. 144 p.
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. Patriotas, festeiros, devotos... As comemorações da Independência na Bahia (1888-1923) in Maria Clementina Pereira Cunha. Carnavais e outras festas. Ensaios de historia social da cultura. São Paulo: Unicamp, 2002
KRAAY, Hendrik. Em outra coisa não falavam os pardos, cabras, e crioulos: o "recrutamento" de escravos na guerra da Independência na Bahia. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/gzWDrtcmgTZYvJCTJD6JqQF/?lang=pt#
KRAAY, Hendrik. Entrevista Disponível em: http://bahiacomhistoria.ba.gov.br/?entrevista=entrevista-hendrik-kraay
LEDEZMA MENESES, Gerson Galo. Festa e forças profundas na comemoração do Primeiro Centenário da Independência na América Latina (estudos comparativos entre Colômbia, Brasil, Chile e Argentina). Tese de doutorado. Universidade de Brasília: 2000.
LEDEZMA MENESES, Gerson Galo. Religiosidade Cívica Na Bahia: Comemorando O Primeiro Centenário Da Independência a 2 De Julho De 1923. Entre a Memória Nacional E a Memória Regional. Esboços, Histórias Em Contextos Globais 16, no. 21 (2009).
SILY, Paulo Rogério M. Presos, mortos e feridos: o Centenário da Independência em estado de sítio. Disponível em: https://pensaraeducacao.com.br/pensaraeducacaoempauta/presos-mortos-e-feridos-o-centenario-da-independencia-em-estado-de-sitio/
Referências dos jornais utilizados na exposição:
foto 3 - Diário da Bahia (capa) - 06 de Setembro de 1922. *Ref. do periódico ano de 1922 - jan/out.
foto 4 - Diário de Notícias - 05 de Setembro de 1922. *Ref. do periódico ano 1922 - jan/dez.
foto 4 - O Democrata (capa) - 07 de Setembro de 1922. *Ref. do periódico: 1922 - jan/out.
foto 6 - Diário da Bahia (capa) - 10 de Setembro de 1922. *Ref. do periódico: 1922 - jan/dez.
foto 7 - O Democrata (capa) - 02 de Julho de 1923. *Ref. do periódico: 1923 - jan/dez.
foto 8 - A Tarde (capa) - 03 de Julho de 1923 - Edição comemorativa dos 100 anos da independência | Foto: Arquivo A TARDE.
foto 9 - O Imparcial (capa) - 05 de Julho de 1923. *Ref. do periódico do ano de 1923 - jan/set.
*Todos os jornais consultados estão disponíveis para consulta no setor de Jornais no primeiro andar da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, situada à R. Gen. Labatut, 27 - Barris, Salvador – BA.
Você pode encontrar todo material produzido pela Biblioteca Virtual Consuelo Pondé sobre o 2 de Julho no link:
http://www.bvconsueloponde.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=208
Temos, também, disponíveis dois episódios do Podcast Boca de Afofô que tratam da temática do 2 de Julho, além do nosso site estamos em todas as plataformas de streaming.
Link para os episódios:
NOS TEMPOS DOS CABOCLOS: AS COMEMORAÇÕES DO DOIS DE JULHO
Com o professor Hendrik Kraay
http://www.bvconsueloponde.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=297
NOTÍCIAS DO DOIS DE JULHO NA BAHIA: AS VÁRIAS FESTAS DENTRO DA FESTA
Com o professor Milton Moura
http://www.bvconsueloponde.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=297
Ficha Técnica
Coordenação - Clíssio Santana/ Acervos Virtuais Baianos/ FPC
Texto/Pesquisa/Montagem - Raquel Pinto/ Acervos Virtuais Baianos/ FPCPesquisa - Onízio Casemiro/ Acervos Virtuais Baianos/ FPC