MARIA FIRMINA DOS REIS: ESCRITORA DA LIBERDADE

“Pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados.” Maria Firmina dos Reis escrevia essa frase em quase todas as suas publicações. Algumas pessoas acreditam ser símbolo de humildade, gosto de acreditar que ela entendia perfeitamente a lógica cruel a qual estava submetida. Tinha plena noção que o patriarcado, o racismo, a escravidão eram sistemas perversos que lhes impunha uma existência à margem.
Há duzentos anos em São Luís do Maranhão nascia Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista a publicar um livro no Brasil. Filha natural de Leonor Felipa, negra forra, e de João Pedro Esteves, homem de posses e sócio do antigo dono de sua mãe, que só teve seu nome declarado em certidão de óbito de Maria Firmina, em 1917.
Maria Firmina viveu a maior parte de sua vida na a Vila de São José de Guimarães, no Maranhão. Em 1947, com 25 anos, concorreu à cadeira de Instrução Primária se tornando professora concursada de primeiras letras, a primeira do estado maranhense. Professora, escritora, poeta, compositora viveu e se posicionou politicamente a favor do máximo de possibilidade de viver para todo mundo. Portanto, não pode jamais ser esquecida ou relegada às margens da História.
Como escritora publicou quatro obras, Úrsula (1859), Gupeva (1861/1862), A Escrava (1887) e o livro de poesia Cantos à Beira Mar (1871). Muito embora tenha publicado durante boa parte de sua vida poemas e textos em diversos jornais. Dentre as suas obras destacam-se “Úrsula” primeiro romance abolicionista ser publicado no Brasil, assinado ainda com pseudônimo “Uma Maranhense” e “A Escrava” nas quais denunciou a perversidade da escravidão e deu voz às mulheres. Nesses romances, Maria Firmina narra os horrores da escravidão e do tráfico, bem como as condições desumanas das pessoas escravizadas no Brasil. Além disso, também pontua o quão as mulheres do XIX eram submetidas a uma lógica perversa ditada pelo patriarcado. Segundo a professora Mariléia Cruz “a autora afro-brasileira e maranhense retratou em suas obras o cenário de desigualdade e resistência negra e feminina no século XIX”. E ainda sobre a autora pontua:
Maria Firmina dos Reis, como qualquer mulher do seu tempo, fazia parte do “belo sexo” em uma sociedade patriarcal. No entanto, foi além de muitas mulheres do seu tempo, já que marcou a história atuando como uma intelectual, destacando-se como poetisa e romancista, deixando registros como colaboradora em jornais maranhenses. Entregou-se à literatura, mostrando para a sociedade que “o belo sexo” poderia se manifestar intelectualmente, causando muita admiração.
Maria Firmina dos Reis dedicou sua vida e sua juventude a se posicionar e se colocar no mundo enquanto mulher. Àquilo, que Conceição Evaristo, anos depois, chama de escrevivência, marca sua escrita, a trajetória e experiência se ser negra no Brasil, ainda dentro de um sistema escravocrata, de condição e ao mesmo tempo de luta, resistência e reversão de estereótipos.
Apesar de ter feito bastante barulho à época, de escrever pontualmente em vários jornais e ter sido incensada pela imprensa quando no lançamento de “Úrsula”, Maria Firmina morreu esquecida, pobre e cega. E durante muito tempo ficou esquecida, com sua obra silenciada. Somente na segunda metade do XX que sua obra é recuperada e reeditada e ainda assim continua sendo pouco estudada e revisitada. Ainda hoje não se sabe como seu rosto de fato era, já que não deixara muitos registros pessoais. As imagens que hoje temos dão conta de retratos feitos a partir de pessoas que as conheceram, que conviveram minimamente com ela, mas sem nenhuma possibilidade de exatidão. Até pouco tempo, circulava uma gravura de uma mulher branca, escritora gaúcha com quem Maria Firmina foi confundida. Essa gravura circulou por muitos lugares: de espaços oficiais às redes sociais, fazendo com que o público, de forma geral, acreditasse que fosse real. Esse “mal entendido” é prova do embraquecimento ao qual muitas escritoras negras são historicamente submetidas.
Maria Firmina dos Reis foi uma mulher negra, escritora, professora, musicista. Fundou a primeira escola mista gratuita do país. Escreveu sobre si, denunciou os horrores da escravidão, mostrou, ainda no oitocentos, que mulher poderia falar e se posicionar no mundo. Foi como tantos outros, voz potente do movimento abolicionista que pavimentou e fomentou a discussão em torno da abolição. O 13 de maio de 1888, longe de ser uma benesse, aconteceu por que pessoas negras como ela se organizaram, lutaram e promoveram ideais de liberdade. Relembrar a trajetória dessas pessoas é entender quem de fato construiu e tramou estratégias de sobrevivência e para o bem viver.
Obras:
· Úrsula. Romance, 1859.
· Gupeva. Romance, 1861/1862 (O jardim dos Maranhenses) e 1863 (Porto Livre e Eco da Juventude).
· Poemas em: Parnaso maranhense, 1861.
· A escrava. Conto, 1887 (A Revista Maranhense n° 3)
· Cantos à beira-mar. Poesias, 1871.
· Hino da libertação dos escravos. 1888.
· Poemas em: A Imprensa, Publicador Maranhense; A Verdadeira Marmota; Almanaque de Lembranças Brasileiras; Eco da Juventude; Semanário Maranhense; O Jardim dos Maranhenses; Porto Livre; O Domingo; O País; A Revista Maranhense; Diário do Maranhão; Pacotilha; Federalista.
· Composições musicais: Auto de bumba-meu-boi (letra e música); Valsa (letra de Gonçalves Dias e música de Maria Firmina dos Reis); Hino à Mocidade (letra e música); Hino à liberdade dos escravos (letra e música); Rosinha, valsa (letra e música); Pastor estrela do oriente (letra e música); Canto de recordação (“à Praia de Cumã”; letra e música).
Para saber mais:
CRUZ, Mariléia dos Santos. “Exma. Sra. d. Maria Firmina dos Reis, distinta literária maranhense”: a notoriedade de uma professora afrodescendente no século XIX”. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/notandum/article/view/59293
D'Angelo, Helô. Quem foi Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista brasileira. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/centenario-maria-firmina-dos-reis/
MORAIS FILHO, J. N. Maria Firmina: fragmentos de uma vida. São Luís: Imprensa do Governo do Maranhão, 1975.
OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. "Escrevivência" em Becos da memória, de Conceição Evaristo. Disponível em: "Escrevivência" em Becos da memória, de Conceição Evaristo (scielo.br)
ZIN, Rafael Balseiro. A DISSONANTE REPRESENTAÇÃO IMAGÉTICA DE MARIA FIRMINA DOS REIS: DA SIMPLES DENÚNCIA ÀS FORMAS ENCONTRADAS PARA SE DESFAZER OS EQUÍVOCOS. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/estudos/article/view/28915