ESCRITORAS BAIANAS: NO PERCURSO DA ESCREVIVÊNCIA

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Quando pensamos em literatura e no papel da mulher nesse espaço a pergunta quem vem à cabeça é: quantas mulheres você leu recentemente, ou ainda, quantas escritoras brasileiras estão na sua cabeceira? A literatura como podemos perceber, é campo majoritariamente ocupado por homens e isso em nada tem a ver com a falta de capacidade, qualidade ou até mesmo vontade.

Historicamente as mulheres sempre estiveram 10 passos atrás dos homens. Em todos os âmbitos da vida social, política, econômica as mulheres foram colocadas em papéis menores, com menos espaço, espaços esses tão pequenos que por vezes não as cabiam. Ser mulher num mundo feito, pensado, projetado por homens nunca foi tarefa fácil, às vezes impossível. Se é difícil ser mulher, dentro dessa categoria “universal”, imagina se fizermos um recorte de classe, raça, sexualidade. O caminho com toda certeza será mais difícil e espinhoso.


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Percorrer caminhos para reverter a lógica que é imposta, também, sempre foi espaço para quem lida com a opressão, com o apagamento, com o silenciamento. A palavra, nesse sentido, se torna arma tanto para comunicar a violência, quanto para estabelecer processos de cura. A literatura feminina é prova disso. É preciso salientar que o uso do conceito “literatura feminina” já é prelúdio de debate. Haja vista não ouvirmos por aí alguém se referir à escrita de homens como literatura masculina. Simone de Beauvoir na década de 70 já pontuava que em nenhum espaço o homem vai ser apresentado como indivíduo do sexo masculino, visto que é enxergado como norma, a condição “homem” é “natural”. Homens, via de regra, não escrevem e se debruçam sobre si, mas se sentem confortáveis em pautar e escrever sobre o tão famoso “universo feminino”. Não encontramos listas como “20 homens escritores que estão fazendo barulho na nova literatura” ou “conheça os 15 homens que mais venderam livros esse ano”, mas quantas listas dessas com mulheres escritoras encontramos com um único clique? Não fazem listas para homens porque eles já dominam tudo, já são o padrão.

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Durante muito tempo, como afirma Norma Telles, a mulher esteve para a literatura como musa ou criatura, nunca como criadora. Mulheres até o início do século XIX também não tinha acesso à educação formal, aprender o caminho das letras para falar de si e do mundo em primeira pessoa era um dos primeiros dos inúmeros obstáculos. À mulher era esperado que cumprisse o papel a ela designado e quase que sagrado: o de mãe, esposa, dona do lar e não dona de si. Àquelas que rompiam com esse arquétipo eram duramente criticadas, expostas, excluídas de uma vida social que já era reduzida. Por isso, durante muito tempo, as mulheres publicavam seus textos, livros, ensaios sob um pseudônimo masculino. Quantas mulheres tiveram sua produção literária e intelectual apagada por essa lógica perversa? Nunca saberemos.

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Esta desvantagem social desde os tempos mais remotos fez com que a produção literária feminina fosse numericamente inferior à dos homens até os dias atuais. Ainda hoje o mercado editorial é desigual, as mulheres publicam muito menos que os homens. Equivocadamente, isso parece ter gerado um ambiente que associou um tipo de ‘padrão de qualidade’ relacionado à produção textual masculina.

Fácil constatar esta realidade, também, através da análise de algumas das principais premiações e eventos literários do mundo: o prêmio Nobel de Literatura, por exemplo, existe desde 1901, mas só foi concedido a 14 mulheres em sua história; a FLIP, Festa Literária de Paraty, já teve 16 edições e entre os escritores convidados, o número de homens é muito maior ao de mulheres; dos 15 livros mais vendidos de todos os tempos temos, apenas, duas escritoras na lista, uma delas Joanne Rowling, autora da saga do jovem bruxo Harry Potter fora aconselhada a publicar sob o acrônimo J. K. Rowling para “mascarar” seu gênero. A Academia Brasileira de Letras tem 40 membros, mas apenas quatro mulheres, todas elas mulheres brancas.

A trajetória em se tornar escritora foi, e é, longa e difícil. Ainda na década de 20 Virginia Woolf, escritora estadunidense, perguntou a si mesma porque nenhuma mulher escrevia “uma palavra dessa literatura extraordinária, enquanto qualquer homem, ao que parecia, era capaz de cantar ou fazer sonetos". Escrita e conhecimento sempre estiveram atrelados ao poder. E as mulheres, historicamente, lutam para ocupar esses espaços.

Quando fazemos o exercício de pensar em escritoras, rapidamente e quase que à revelia, surgem nomes como Agatha Christie, Jane Austen, Virgínia Woof, Nora Roberts se o exercício for a respeito de escritoras estrangeiras, e Clarice Lispector, Cora Coralina, Lygia Fagundes Telles, Rachel de Queiróz se esse mesmo exercício for sobre escritoras brasileiras. O que essas mulheres têm em comum? Todas elas são brancas e tinham certo privilégio econômico.

Isso não tira, de forma alguma, o brilhantismo e a importância que essas mulheres tiveram, e tem, no campo literário. Raquel de Queiroz, por exemplo, teve seu primeiro livro, escrito aos dezenove anos, causou grande espanto na crítica não só por não parecer ter sido escrito por uma mulher, mas também pela precocidade. Tendo diversas obras importantes de sua autoria, livros em que fala de brasilidade a partir de uma narrativa em que o nordeste é protagonista . Suas personagens femininas, mostram diferentes perspectivas sobre a mulher, embora também aborde outras questões como a pobreza e a vida no sertão e nas cidades, ao mesmo tempo em que destaca sua preocupação com a linguagem literária.

Já Clarice Lispector escritora e jornalista brasileira, que nasceu na Ucrânia. Escreveu romances, contos e ensaios, sendo considerada uma das escritoras brasileiras mais importantes do século XX. As suas produções trazem rotinas cotidianas, trazendo também como personagens pessoas comuns. Inqualificável, Clarice, ao fim e à cabo como ela mesmo gostava de pontuar, “nunca escreveu para agradar ninguém”, contudo, agradou tanto que até hoje é lida, revisitada, estudada. 

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Entre Clarices, Lygias, Racheis, onde estão as escritoras negras? Estão aqui produzindo, escrevendo, publicando e fazendo barulho. E as que não estão mais aqui, como Carolina de Jesus, deixaram seu legado. Abriram caminho para que as mais novas pudessem trilhar e se enxergar como sujeitas de sua própria história. Carolina Maria de Jesus escritora e memorialista, registrava o que vivia como quem comia palavras, já que o de comer era pouco. A literatura produzida por uma mulher negra e pobre comunicava sobre esse lugar.

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Quarto de Despejo fora lançado em 1960 com vendagem recorde, traduzido para 13 idiomas e distribuído em mais de 40 países. Incensada pela imprensa da época Carolina morreu esquecida pelo público e também por essa mesma imprensa que a alavancou. Talvez por um desejo quase mórbido em conhecer a vida de uma favelada, fora gerada e destruída pela indústria cultural em curto espaço de tempo. Carolina Maria de Jesus representou um marco na literatura e, talvez, por isso seja lembrada com certo protagonismo. Mas o país que gerou Carolina, também pariu Maria Firmina dos Reis, poeta, romancista, professora. Maria Firmina foi a primeira escritora negra do Brasil e a primeira autora de romance abolicionista em toda a língua portuguesa. Já no século XIX escrevia em forma de denúncia a respeito da opressão em que as mulheres e a população negra viviam. Mulheres como Carolina de Jesus e Maria Firmina abriram caminho para que outras mulheres pudessem trilhar. Conceição Evaristo é prova disso.

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Evaristo, assim como suas mais velhas, rompe com a pobreza e centra seus livros no universo das relações de gênero. Em um contexto social marcado pelo racismo e sexismo, assustador perceber que nem tão diferente do tempo em que Maria Firmina e Carolina de Jesus escreviam, Conceição Evaristo escolhe o caminho do afeto para mover seus leitores. A partir daquilo que cunhou como escrevivência, comunica do lugar de mulher, negra, mãe, filha. Evaristo nos conta aquilo que viveu e gostaria de ter vivido e isso faz com que as pessoas que a lê, tenham motivos para acreditar.


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É nítido que mulheres escritoras no Brasil, tiveram, e tem, suas escritas e trajetórias silenciadas, e silêncio aqui serve para vários lugares e amplos sentidos: silêncio na autoria, silêncio na publicação, silêncio no espaço, silêncio na relevância. Dito isso a pergunta que fica é: como ter fôlego para escrever e produzir literatura num mundo que não incentiva? Ainda mais, como escrever em um país que não valoriza escritoras, em um momento em que percebemos a escalada do ódio, do negacionismo, do machismo, do racismo? Talvez o caminho seja ser subversivo: ler, escrever, produzir.

Nesse sentido, nada melhor do que convidar para azeitar esse debate quem de fato está dentro dele. Convidamos quatro escritoras baianas para nos contar como é esse negócio de escrever, de se perceber como escritora, nos comunicar a respeito do fazer literário sendo mulher, sendo mulher nordestina.

Evelyn Sacramento, baiana e cofundadora do projeto Lendo Mulheres Negras, autora de “Menina Nicinha” que marca sua estreia como escritora. Nos traz algumas respostas, para ela:

A partir do Lendo Mulheres Negras e influenciada por escritoras negras de diferentes gerações, vi a possibilidade de que talvez fosse escritora. Com nosso trabalho de visibilizar escritoras e ser uma ponte para que mulheres negras, que assim como eu, não compartilhavam seus escritos pudessem assim, mostrar, chegou um momento em que me vi num lugar de contradição com aquilo que acreditava, neste momento, entendi que poderia sim escrever e criar estratégias para publicar.  Sou uma jovem escritora em busca de entender que tipo de escritora eu sou, publiquei um livro infantil que tem como base minhas referências pessoais, familiares e coletivas de minha cidade, mas comecei a escrever poesia e contos - este muito inspirada nas histórias e principalmente imagens que aprendi a compor estudando cinema.

A escritora Gonesa Gonçalves, soteropolitana, autora de Cata Ventos fala a respeito das dificuldades encontradas nesse trajeto, para ela ser mulher escrevivente ainda é um caminho espinhoso, a desvalorização de seu trabalho é uma realidade

Eu ainda não sei se eu escrevo profissionalmente e não sei o que é ser escritor profissional. Eu estou em constante aprendizado com as letras. Inclusive sempre digo como é ser escritora recebendo bolsa de estágio de R$ 500,00. Como tem sido difícil a caminhada sem um emprego formal e sem conseguir abrir um negócio próprio por falta de capital financeiro. [...] Talvez não tenhamos capital financeiro, mas o intelectual nós dominamos. Isso é uma ferramenta importante. Nós, com toda dificuldade que envolve problemas de gênero, relações de trabalho, sempre estamos frequentando eventos (antes da pandemia presencialmente), fazendo atividades juntas e criando redes de apoio. Por mais que essas redes sejam enfraquecidas por problemas como o racismo estrutural, nós estamos sempre lendo umas às outras. Isso não exclui o fato de ser difícil ter acesso ao mercado editorial. Ninguém encontra o nosso livro naquelas livrarias que as pessoas vão para tomar capuccino e comprar best seller. O mercado editorial não está interessado em formar leitores de Literatura Negra Feminina.

Ao questionar sobre o que é ser escritora no Brasil, o coro é oníssono: todas pontuaram que é um enorme desafio, contudo buscam nesse fazer literário seus processos de cura pessoais e cotidianos. Jade Lôbo, escritora e pesquisadora baiana nascida em Ilhéus, autora de Para Além da Imigração Haitiana, nos indica alguns caminhos

A colonização traz esse desencantamento do mundo, ela dita como nós devemos ser, quem nós somos, como deveríamos acreditar que somos. Esse encantamento da literatura, principalmente da literatura negra, que eu tento trazer para dentro da minha escrita [...] Tudo que eu escrevo é sussurrado pra mim, vem quase como incorporação, a inspiração baixa em mim como um raio e eu saio escrevendo coreografias lindas de palavras.

Quando o debate gira em torno de literatura produzida por mulheres, percebe-se que existe sempre um ponto entre desvalorização/precariedade e a necessidade da escrita. É nítido que mulheres escritoras que surfam nesse lugar que parece não as quererem, escrevem porque precisam. Mas escrevem para quem? Quem consome essa literatura? Para além de toda dificuldade encontrada no fazer literário e de encarar a escrita como profissão, ainda existe um entrave no mercado editorial. Vanessa Brunt, cronista, contista poeta baiana, autora de nove livros, entre eles Não Precisa Ser Assim, tem larga experiência com esse mercado e do porque ainda hoje acreditarem que mulher só escreve sobre e para mulher

Se existe um livro de romance assinado por uma autora, grande parte do público ainda tende a pensar que aquilo vai ser "água com açúcar demais", principalmente se for um prejulgamento do público masculino. Esquecem que mulheres tratam de críticas sociais, dos lados menos belos, do sexo em seus diversos graus e de tantos outros temas entre sangues e dores, mesmo que em livros de romance ou nas "tramas mais clichês". Ainda hoje, a autora de Harry Potter talvez recorresse à mesma saída de colocar apenas as iniciais do seu nome para que meninos comprassem o seu livro sem preconceitos. Nós, mulheres, também tratamos de sexualidade, política, paixões ardentes, esquemas de poder, empreendedorismo, guerras literais e metafóricas e tantas outras nuances. O problema é que grande parte da sociedade ainda leva tudo isso mais a sério quando faz a leitura sem saber que veio de uma mão do escopo feminino.

Não resta dúvida de que as mulheres se debruçam sobre todos os temas e percorrem todos os gêneros literários. Estatisticamente estudam mais, leem mais, estão em maior número em rodas de conversas sobre literatura, fundando clubes de leitura, em cursos sobre escrita literária. As mulheres estão em maior número nos cursos de graduação e pós-graduação. As mulheres estão em maior número no mundo. Mas ainda são, infinitamente, menos lidas e publicadas que os homens. A conta não fecha. É certo que vivemos em uma sociedade patriarcal e machista, mas começar a romper esses ciclos históricos é fundamental para o início de uma reparação histórica. Como começar? Lendo mulheres, publicando mulheres, convidando mulheres para falar sobre sua escrita, compartilhando livros de autoras com os amigos, sugerindo escritoras para compor bibliografia na escola. E então você já leu um livro escrito por uma mulher hoje? Vai, sempre há tempo.


Sobre as escritoras convidadas:

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Bacharel em Cinema e Audiovisual, mestre em Estudos Étnicos e Africanos, Evelyn Sacramento é cofundadora do projeto Lendo Mulheres Negras. É autora do livro Menina Nicinha lançado em 2021. @evelynss


ggGraduanda de Arquivologia, membro do grupo de pesquisa Rasuras na UFBA, Gonesa Gonçalves escreve poesia, conto, crônica, romance e também lida com literatura oral. Participou da coletânea literária Enegrescência e é autora de também de Cata Vento, lançado em 2020. @gonesas


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Doutoranda em Antropologia, associada à Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, Jade Lôbo é poeta e pesquisadora. Autora de Para Além da Imigração Haitiana, lançado em 2019. @jadealobo



vbCronista, contista poeta e jornalista, conhecida por fazer brincadeiras com as palavras, as cortando e/ou ressignificando, Vanessa Brunt é autora de nove livros, com cinco distribuídos no Brasil e em Portugal. Depois Daquilo, Ir Também é Ficar e Não Precisa Ser Assim são alguns dos seus títulos. @vanessabrunt 




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. 4.ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,1970.

 

CARNEIRO, Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Feusp, 2005. (Tese de doutorado).

 

COLASANTI, Marina. Muitas Vozes, Ponta Grossa, v.1, n.2, p. 217-225, 2012. Ser mulher e escritora no Brasil. Disponível em:

https://www.revistas.uepg.br/index.php/muitasvozes/article/view/5168/pdf_62 

 

LISBOA, Adriana. Escrever no Brasil depois de Clarice Lispector: armadilhas ficcionais. Journal of Iberian and Latin American Studies, vol. 14, n.2-3, agosto/dezembro, 2008. Disponível em:

https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/14701840802544025?scroll=top&needAccess=#OOPS#

MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira: simbolismo, vol 2. São Paulo: Cultrix, 2001.


Mulheres discutem a literatura em Parati. Terra. Rio de Janeiro, 10 jul. 2004. Arte e Cultura. Disponível em: http://diversao.terra.com.br/arteecultura/noticias/0OI340849-EI3615,00-Mulheres+discutem+a+literatura+em+Parati.html. Acesso em: 17 de janeiro de 2022.


TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: Del Priore, Mary. História das mulheres no Brasil, 1997.

 

SANTIAGO, Ana Rita. Vozes literárias de escritoras negras. Cruz das Almas: Editora UFRB, 2012. 260 p. Disponível em: http://repositorio.ufrb.edu.br/handle/123456789/771


WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1985.



Ficha Técnica Acervos Virtuais Baianos/ FPC

Coordenação - Clíssio Santana

Texto/Pesquisa/Revisão - Raquel Pinto
Pesquisa - Onízio Casemiro

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