Quilombolas conectados: o uso da internet e das redes sociais no quilombo Rio das Rãs

 

Shirley Pimentel de Souza

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Quando nos referimos a quilombo, ainda hoje existe no imaginário social uma ideia de comunidades isoladas com pouco contato com a chamada “civilização”, logo, sem acesso aos bens de consumo da sociedade industrializada, como televisão, geladeira, telefone e acesso à internet. Tais impressões são extremamente equivocadas, visto que, mesmo os quilombos do período colonial mantinham redes de comunicação fora do seu território e muitos mantinham comércio com outras comunidades e com cidades vizinhas. Além disto, a diversidade de modos de formação de comunidades quilombolas é muito grande, não cabendo generalizar, tomando como base apenas um destes modos.

De acordo com Cloves Moura (1993) os negros aquilombados entravam em contato com outros grupos e segmentos oprimidos como os indígenas, mascates e contrabandistas de diamantes e ouro para garantir abastecimento, principalmente de armas e pólvoras, além de informações sobre as medidas tomadas pelo Estado para o combate aos quilombos. Notamos assim, que as trocas de bens e serviços, bem como as trocas culturais sempre ocorreram nas comunidades quilombolas, não sendo diferente na atualidade. Fazendo uma reflexão sobre como os quilombos da atualidade realizam trocas culturais por meio da internet, traremos neste texto algumas impressões e análises acerca do uso da internet e das redes sociais no quilombo Rio das Rãs, destacando como estas ferramentas têm influenciado o cotidiano da comunidade.

A região onde se encontra a referida comunidade é conhecida como território Velho Chico e abriga atualmente 15 comunidades quilombolas, sendo a maioria localizada no município de Bom Jesus da Lapa, Bahia. É possível visualizar a localização da comunidade e do território Velho Chico no mapa abaixo .

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Em muitas destas comunidades, a energia elétrica chegou a partir do ano de 2004 através do programa Luz para Todos do Governo Federal, dando acesso, entre outras coisas, à mídia televisiva. Até então a mídia radiofônica era o principal meio de comunicação utilizado por aqueles grupos étnicos. O acesso às redes de telefonia ainda é bastante precário na maioria das comunidades em função da distância até as torres de distribuição de sinal de celular. Porém, em 2011 o acesso à internet começou a ser possível por meio do EMITec3, que é um programa do governo do estado da Bahia que visa ofertar o Ensino Médio à distância para as comunidades rurais. Em 2012 iniciou-se a implantação da internet via rádio no quilombo, popularizando-se no ano de 2013. Atualmente, o acesso aos Smartphones é bastante comum, deixando a internet ao alcance das mãos.
Tal acesso possibilitou, de algum modo, a inclusão daquele grupo étnico no que alguns teóricos chamam de cibercultura. De acordo com Pierre Lévy (1999) a cibercultura é “o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço” (p.13). Notamos, assim, que a cultura digital não se restringe ao uso de novos equipamentos e produtos, ela traz novas experiências sociais, políticas, interfere nos meios de produção, enfim, em toda a estrutura da sociedade. Neste formato de interação, cada indivíduo possui autonomia para criar, publicar, se comunicar, pois, como afirma Lemos (2009), as tecnologias de informação e comunicação “redefinem as relações sociais e os sentidos de lugar” (p. 33).

Experiências e impressões de quilombolas sobre o uso da internet


Para a realização deste ensaio, fizemos uma postagem na rede social Facebook, solicitando que os/as quilombolas relatassem como tem sido a experiência do uso da internet na comunidade (imagem 02). Fizemos ainda uma postagem na rede social Whatsapp em um grupo de discussão de quilombolas, chamado “Quilombos dos ancestrais”.

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Dentre as principais respostas obtidas, é possível constatar que o uso da internet se dá principalmente para comunicar com parentes que moram distante, para pesquisas escolares e uso das redes sociais de um modo geral. Trataremos abaixo destas experiências, de acordo com os relatos das interlocutoras.

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a) Pesquisas escolares

De acordo com a professora quilombola Simone Nunes (imagem 03), o uso da rede para pesquisas escolares tem contribuído para a melhoria na qualidade da educação, visto que em função das precárias condições de trabalho, a prática educativa na escola era muito restrita ao uso do livro didático. Com a introdução da internet no quilombo, ampliou-se a possibilidade de uso de outras fontes de informação disponíveis na rede.

Outro elemento destacado por Simone foi a possibilidade de formação inicial e continuada, principalmente dos docentes, visto que a maioria faz curso de graduação a distância. Esta modalidade de ensino exige do estudante um longo tempo de contato virtual com tutores e turmas, além da realização das leituras e atividades acadêmicas.
Seguindo a mesma linha de análise, o quilombola Reginaldo Ramos destaca que tem utilizado a internet como uma rica fonte de informação, conforme vemos no seu relato abaixo:

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b) uso das redes sociais

Conforme relatado, o uso das redes sociais tem sido utilizado principalmente para entrar em contato com parentes que moram distante, conforme podemos observar no relato da interlocutora Aldineia:

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Esta interlocutora destaca a existência de muitos quilombolas morando em outras cidades, daí se nota a importância das redes sociais neste processo de comunicação. Para contextualizar a existência de uma “diáspora quilombola” nos grandes centros urbanos, é importante informar que durante o período de conflito entre moradores da comunidade e fazendeiros que reivindicavam a propriedade das terras secularmente ocupadas pelos quilombolas, muitos moradores se viram obrigados a abandonar o quilombo para buscar melhores condições de vida em capitais como São Paulo e Goiânia.
Além desta situação ocorrida durante os conflitos fundiárias das décadas de 1970 e 1980, observa-se que, atualmente, grande parte dos jovens da comunidade sai para trabalhar no corte de cana e na colheita de laranja em estados do Sul e Sudeste do país, como Paraná e São Paulo. Eles permanecem em torno de nove meses longe de seus familiares, retornando para a comunidade, geralmente no mês de novembro, e saindo novamente entre os meses de fevereiro e março. Esta situação faz com que as redes sociais e as novas tecnologias da informação e comunicação ganhem um papel fundamental para “diminuir as distâncias” entre as pessoas.
Não foi por acaso que todos os/as interlocutores destacaram este papel como sendo essencial na experiência dos quilombolas com a internet. Podemos observar isto também nas falas abaixo:

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c) outras conexões

Além do que os/as quilombolas enfatizaram nas postagens, ao acompanhar um número significativo de quilombolas nas redes sociais, tenho notado ainda que eles têm utilizado este espaço para divulgar a cultura local e para realizar denúncias acerca da situação de descaso do poder público quanto à prestação de determinados serviços.
Na página “Quilombo Rio das Rãs” (imagem 08), no Facebook, observamos que a maioria das postagens é de exaltação da cultura afro-brasileira, africana e quilombola, em especial a da comunidade. Além disto, é comum a publicação de reportagens e estudos sobre racismo, personalidades negras e fatos históricos envolvendo a população negra:

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A interlocutora Simone Nunes falou ainda, em outro trecho do seu relato (imagem 09), que estas experiências dos quilombolas na internet têm servido como meio para quebrar alguns estereótipos acerca do que é ser quilombo. Sua fala foi empoderada e lúcida, como podemos observar abaixo:

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De um modo geral, notamos que os/as quilombolas têm se apropriado das ferramentas disponíveis nas novas tecnologias da comunicação e informação e, como destaca a interlocutora Nazaré, via o aplicativo Whatsapp: “eu considero positivo o usa da internet, pois tem ajudado a comunidade a estar conectado na rede”. Já a interlocutora Leiliane Borges ressalta ainda a importância de utilizar os recursos da internet para conquistar mais espaços na sociedade, como podemos ver no relato abaixo:

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Algumas considerações

Observamos que, longe da ideia cristalizada que se tem de quilombo, estes povos têm se utilizado dos espaços virtuais de maneira autônoma, ativa e criativa, de modo a construir novas formas de socialização e de produção, manutenção e ressignificação cultural. Engana-se quem imagina que o contato com as novas tecnologias faz com que os quilombolas se afastem de sua cultura. Porém, a comunidade demonstra preocupação com o uso que os/as jovens estão dando à internet e destacam a necessidade de um uso consciente, de modo que não traga malefícios para eles. Mas é importante observar que esta é uma preocupação da sociedade de uma maneira geral e não apenas dos quilombos.
Por se tratar de um fenômeno recente, ainda não é possível analisar a complexidade das mutações culturais e sociais que a inserção das novas tecnologias da informação e comunicação vem trazendo para o quilombo, mas destacamos que ser jovem quilombola hoje no Rio das Rãs e o papel que estes jovens exercem no mundo já apresentam muitos elementos incorporados e ressignificados por meio da cibercultura.


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2 Pedagoga pela UNEB; mestra em Educação pela UFBA; militante do Movimento Quilombola junto à Central Regional Quilombola do Território Velho Chico (CRQ).

3 Ensino Médio por Intermediação Tecnológica.

REFERÊNCIAS

Cloves Moura. Quilombos: Resistência ao Escravismo. São Paulo: Ática, 1993.
André Lemos. "Cultura da mobilidade". Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, v. 1, n. 40, 2009. Disponível em: <revistaseletronicas.pucrs.br>. Acesso em: Acessado em 20 de outubro de 2016.
Pierre Lévy. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

 

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