De moradores de Quilombo a quilombolas: uma experiência rural no Recôncavo Baiano pós-abolição


João Paulo Pinto do Carmo

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Quilombo é o nome de um dos vários povoados negros rurais situados no Outeiro Redondo, distrito de São Félix–BA. Sua história nos faz refletir acerca das comunidades quilombolas e da diversidade de ser quilombola. Em termos demográficos, atualmente o contingente de pessoas que residem nessa localidade ultrapassa a casa dos 80 habitantes. No entanto, para as primeiras décadas da abolição, é provável que esse número tenha atingido percentuais mais elevados. Nas narrativas difundidas pelas tradições orais desse lugar e redondezas, nota-se a presença de demais agrupamentos familiares que migraram desse território no decorrer daqueles anos2.

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Quando criança ouvia papai Hermínio contar que seu avô paterno, Marcos Santiago do Carmo, afirmava que havia nascido dois anos após a promulgação da lei que aboliu o cativeiro no Brasil. Entre os vestuários usados pelo velho Hermínio, recordo-me do chapéu de palha, da bota de couro e do facão de 22 polegadas preso à cintura. Ele fazia parte da terceira geração de moradores nascidos nessa localidade após a abolição, onde filhos e netos conviveram com os antepassados.

Os mais velhos do povoado narram “causos” envolvendo seus familiares e vizinhos no pós-abolição, mas costumam manter silêncio a respeito do passado de escravidão3. Apesar de ser membro de uma família negra e ter nascido nessa comunidade, confesso que não foi tarefa fácil acessar informações que possibilitassem compreender a sua história e dimensionar os significados do topônimo que a nomeia.

Aprendi, com isso, que existem também fronteiras para aqueles que são de dentro. Quase todas as vezes que informo o endereço onde nasci e vivo, o interlocutor ou interlocutora questiona se esse lugar foi realmente um “quilombo”.

Motivados também pela referência histórica do nome, anteriormente pesquisadores de diversas instituições tentaram estudar essa localidade. Alguns, inclusive, ao se depararem com culturas e pessoas distintas das existentes nos “quilombos imaginados”, desistiam da iniciativa embasados na justificativa de que não encontravam fonte documental. A historiografia brasileira, por muito tempo, contribuiu para a generalização da experiência vivida em Palmares a todo o território nacional. A imagem do quilombo como comunidade isolada, distante de tudo e de todos, no meio da mata, organizada exclusivamente por cativos fugitivos, possivelmente repercutiu na análise desses estudiosos4

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Que lugar é esse? Foi constituído a partir de fugas de escravizados? Trata-se de uma comunidade descendente das senzalas de alguma propriedade que outrora se instalou nesse contexto geográfico? Estes e outros questionamentos povoaram a minha imaginação e, de certa maneira, devem ter impulsionado o imaginário tanto dos curiosos que desejaram saber a origem desse agrupamento comunitário quanto dos próprios moradores e moradoras do Quilombo quando se viram diante do processo de autoafirmação da sua identidade étnica. Até então, esses lavradores e lavradoras apenas se consideravam pertencentes a um povoado rural sem tanta distinção.

Após vários anos de debates, tensões e tentativas, em janeiro de 2016, a maioria das pessoas residentes no Quilombo se autodeclararam quilombolas e encaminharam pedido de certificação à Fundação Cultural Palmares, em Brasília5 . Entre os fatores que concorreram para a efetivação desse processo histórico, encontram-se a experiência anterior de outras comunidades do município que se autoafirmaram, bem como a mobilização e entendimento dos jovens a respeito dessa afirmação identitária6.
Afinal, como essa comunidade foi constituída? Nas casas de farinha, nos encontros e reencontros cotidianos, e nas outras instâncias de sociabilidades comunitárias, falava-se dos feitos acontecidos no antigo “engenho de Zé Inácio”. No meu cotidiano familiar de roceiro, nos momentos em que saía para caçar e/ou pescar acompanhado de irmãos e amigos, ficava espantado com as ruínas daquela propriedade. Os moradores mais velhos da comunidade nomearam esse lugar de “Bomba do Tanque”, por conta de sua proximidade com as antigas estruturas de barramentos da represa, e ainda costumam dizer que ali tem assombração7 .


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Existe relação entre a comunidade e o engenho? Conforme afirmação feita no início, os mais velhos do Quilombo e da vizinhança narram uma série de histórias envolvendo cativos, libertos e proprietários daquelas imediações. Mas dificilmente se colocam como parte desse passado. A escravidão parecia distante, um acontecimento isolado e sem relação com o povoado. Os antepassados timidamente são incluídos na relação dos escravizados e escravizadas que viveram a experiência do cativeiro naquela propriedade.
Como estudante da educação básica, sobretudo no Ensino Médio, pude vivenciar momentos de aprendizagens e acessar materiais bibliográficos com informações sobre o sistema escravista, seus dilemas e personagens. Foi nesse contexto que comecei a indagar os velhos e velhas sobre a história particular da comunidade e a respeito de sua ligação com o engenho. Aos poucos, às memórias contadas pelos narradores locais e dos povoados adjacentes foram incorporando nomes e sobrenomes de familiares e vizinhos que viveram a escravidão8.

Em um desses diálogos, Catarino Felício de Jesus, nascido em 1927, apelidado de “Catu”, rememorou que o avô Benedito Santiago foi um dos ex-cativos do Engenho Sinunga que permaneceu nessas terras após a abolição. Segundo o narrador, o velho Santiago, apelidado de “Tilága”, usava “chapéu de palha” e tinha “cor escura”. Ele morava com a família na propriedade dos ex-senhores9 . Marcos Santiago, tio de Catarino, era um dos filhos desse liberto, o qual constituiu uma família numerosa nessa comunidade. Nos dias atuais, netos, bisnetos, trinetos e mais parentelas interligadas a esses ascendentes vivem no Quilombo.

O autor das linhas que vos escreve é bisneto de Marcos Santiago e trineto do liberto Santiago. O grupo familiar formado por esses ascendentes abriga um dos maiores contingentes de moradores residentes nessa comunidade. Na década de 1930, através de compras de terras, essa família se firmou nessa localidade e posteriormente se expandiu para outras povoações rurais e urbanas da região. Além desses itinerários migratórios e da cidade do Salvador, sabe-se que o Sudeste do país também foi um dos destinos desses personagens.
A proximidade com essas histórias e o desejo de conhecer mais a fundo o passado do Quilombo me deslocaram para a universidade. Fazendo isso, em 2009, ingressei no curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. A partir desse marco, iniciei uma investigação com o intuito de saber como as comunidades negras do Outeiro Redondo se constituíram ao longo do tempo. Pretendia, dentre outras coisas, desvendar de que maneira as senzalas dos engenhos e fazendas daquele distrito se desdobraram em povoados atuais. Ao longo desses anos, tenho persistido nesse trajeto e localizado fontes documentais importantes sobre a temática.
A documentação garimpada nos acervos dos cartórios e arquivos municipais de São Félix, Cachoeira e Salvador, aliada às tradições orais, sugerem que a comunidade do Quilombo descende das senzalas do Engenho Sinunga10. Nos últimos anos da escravidão, essa propriedade pertencia aos herdeiros de Fernando José de Queiroz, falecido em 21 de março de 1873 . Entre as décadas de 1870 e 1880, a família senhorial foi ré em processo judicial aberto pelo capitão Rodrigo José Ramos, o qual residia na cidade da Cachoeira. Esse comerciante alegou que o falecido senhor lhe devia dinheiro proveniente de empréstimos adquiridos como adiantamentos nas entressafras do açúcar. Os herdeiros, por sua vez, argumentaram que o credor estava se aproveitando daquela situação para arrematar o engenho12.

Escravizados, casas, cafeeiros e acessórios do engenho foram submetidos à penhora em março de 1877. Mas, ao que parece, os herdeiros conseguiram reverter aquele quadro. Para além das tensões e conflitos entre o credor e a família Queiroz, o documento contemplou aspectos relacionados à comunidade de senzala do Sinunga. No início da década de 1870, a propriedade concentrava cerca de 40 cativos, entre estes, identifiquei algumas uniões.

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Nas décadas seguintes à abolição, foi possível localizar indivíduos e grupos familiares que emergiram da escravidão residindo nas imediações do Engenho Sinunga. Em 3 de dezembro de 1891, Adriano, africano, 60 anos, casado com Henriqueta, africana, faleceu de “moléstia interna” no “lugar Sinunga”13. Ao analisar a lista de escravizados do engenho referente à década de 1870, concluí que ambos foram cativos da propriedade. Naqueles anos, o africano foi arrolado em 500$000rs e sua companheira em 450$000rs. No final daquela década, em 1877, notei que Henriqueta continuava sob o jugo do cativeiro e Adriano emergiu na condição de liberto14.

Em 5 de julho de 1897, Quirino Tito de Queiroz registrou o falecimento de sua filha, Martinha, “cor preta”, 2 anos, vítima de sarampo. Quirino e a esposa Maria Mathildes de Jesus residiam na “Matataúba”, comunidade vizinha às terras do engenho15. A falecida era uma das netas do casal composto por Tito de Queiroz e Romana Maria do Desterro. No dia 2 de fevereiro de 1898, Tito faleceu em uma localidade chamada “Sapé”, onde vivia com Romana16.
No dia 26 de dezembro de 1908, Antônio Tito de Queiroz compareceu ao cartório para certificar o nascimento de sua filha Maria, ocorrido no dia 20 daquele mês. Antônio declarou que era filho dos libertos Tito e Romana16, falecidos, e residia na comunidade do “Sapé” juntamente com Amância Maria Brasilina17. Consultando a relação de cativos do Engenho Sinunga, elaborada em 1873, apurei que Antônio, crioulo, arrolado em 700$000rs, devia ter entre 11 e 12 anos, pois seus irmãos tinham entre 2 e 9 anos de idade. No pós-abolição, membros dessa família permaneceram residindo nas imediações dessa mesma propriedade18.
O acesso às memórias através de entrevistas orais e a partir de consultas nos acervos cartoriais e eclesiásticas, colhidas nesse itinerário investigativo, possibilitaram a identificação de pessoas que nasceram nos tempos do cativeiro vivendo nas terras dessa propriedade após a abolição. Nesse contexto histórico, o povoado em questão emergiu como parte do desdobramento da comunidade do engenho. A área ocupada pela comunidade remonta às antigas senzalas e está situada em proximidade com as ruínas das casas de engenho.

Aos poucos, a denominação Quilombo foi suplantando o topônimo da propriedade. Esse processo não aconteceu de maneira imediata e nem por acaso, sua consolidação se deu ao longo das décadas iniciais do século XX. As recordações da escravidão, paralelas à presença de ex-cativos e descendentes, podem ter impulsionado essa rememoração do “quilombo” como lugar de resistência e moradia de pretos. Essa foi a história ou uma das possíveis histórias do Quilombo.

A história dos quilombolas não terminou com o fim legal da escravidão, no final da década de 1880. Ela se desdobra no tempo presente, na medida em que as antigas comunidades não deixaram de existir, pelo contrário, se transformaram e continuam em transformação. Por isso, as trajetórias dos libertos que viveram nesse engenho são importantes para compreendermos a história do povoado. Santiago foi um desse moradores, ali formou família e mais tarde seus filhos e netos adquiriram uma parcela de terra desmembrada do engenho onde havia vivido a experiência da escravidão.

 

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1 Graduado em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
2 Refiro-me a entrevistas realizadas com o Sr. Catarino Felício de Jesus, nascido em 1927, residente no Quilombo, concedidas em 17 de setembro de 2011, 19 de outubro de 2014 e 23 de novembro de 2015; e aos depoimentos da Sra. Leonilda Maria da Silva, nascida em 1930, residente no Rodão, povoado vizinho, concedidos em 5 de julho de 2010 e 22 de maio de 2014. As narrativas desses moradores possibilitaram o cruzamento de informações colhidas na documentação cartorial referente aos antigos moradores dessa geografia.
3 Do ponto de vista dos mais velhos, a escravidão é um passado trágico e por isso a sua recordação também é trágica. Devemos lembrar que muitos desses narradores ainda tiveram a oportunidade de conhecer e conviver com ex-cativos, portanto ouviram as histórias que aconteceram no cotidiano daqueles que viveram a experiência do cativeiro. Para uma reflexão profunda sobre a temática a partir das memórias do cativeiro contadas por descendentes de libertos, ver Ana Lugão Rios & Hebe Maria Mattos. Memórias do Cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

4 Cf. João José Reis. "Escravos e Coiteiros no Quilombo do Oitizeiro – Bahia", 1806. In: ______. & Flávio dos Santos Gomes (Org.). Liberdade por um fio: História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 332-372; Flávio dos Santos Gomes. Histórias de Quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro: século XIX. Ed. revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Nas últimas décadas, e intensamente nos últimos anos, estudos sobre as experiências das comunidades tradicionais, sejam elas remanescentes de quilombos, engenhos ou fazendas, têm demonstrado a diversidade de lutas pela terra, território, cidadania, etc. Ver Rosy de Oliveira. O Barulho da Terra: nem Kalunga nem Camponeses. Curitiba: Editora Progressiva, 2010; Valdélio Santos Silva. “Rio das Rãs à luz da noção de Quilombo”. Afro-Ásia, nº. 23, 1999, p. 267-95; ver Carmélia Aparecida Silva Miranda. Vestígios recuperados: experiências da comunidade negra rural de Tijuaçu – BA. São Paulo: Annablume, 2009.
5 O documentário “Quilombos da Bahia”, produzido pelo cineasta Antonio Olavo e sua equipe, em 2004, contempla imagens e áudios sobre essa comunidade. Após essa produção, os jovens começaram se perguntar sobre o passado daquele lugar. A autodeclaração e o encaminhamento do pedido de certificação à Fundação Cultural Palmares foram processos executados conjuntamente com o povoado vizinho denominado Pau Grande.

6 Os jovens da comunidade, sobretudo aqueles que estão ingressando nas universidades públicas, já compreendem essa afirmação identitária para além de sua dimensão instrumental como quesito necessário para acessar políticas sociais.
7 Entrevistas realizadas com a Sra. Nair de Queiroz Silva (in memoriam), moradora do Quilombo, que faleceu em 2012 com mais de 80 anos, depoimentos concedidos em novembro de 2007 e setembro de 2010; e Sra. Margarida Pinto, “mais de 70 anos”, rezadeira, residente no Quilombo, depoimento concedido em diálogo com o esposo: Sr. Antônio Bento Barros, “mais de 80 anos”, residente no Quilombo, em 20 de maio de 2011.
8 Procedimento de análise tendo o nome como fio condutor foi realizado para o contexto do pós-abolição no Brasil por Robert Slenes em texto publicado anteriormente sobre a história de uma comunidade negra rural do interior de São Paulo e por Walter Fraga em estudo envolvendo trajetórias de cativos e libertos na Bahia, sobretudo no Recôncavo baiano. Ver Robert Slenes; Carlos Vogt; Peter Fry. História do Cafundó. In: Cafundó: a África no Brasil: linguagem e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 37-103; e Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Ed. da Unicamp, 2006, p. 23-30.
9 Entrevista realizada com Sr. Catarino Felício de Jesus, em 17 de setembro de 2011. Seu Catarino mencionou ser “Benedito” o primeiro nome do avô, mas ressaltou que não tem certeza. Sendo assim, resolvi usar o segundo nome “Santiago”, pois é bem conhecido por outros moradores do Quilombo. A Sra. Militana Vila Verde do Nascimento (in memoriam) nascida em 1922, moradora do Quilombo, em depoimentos concedidos em novembro de 2007 e agosto de 2010, e a Sra. Leonilda Maria da Silva, em entrevista realizada em 5 de julho de 2010, afirmaram que alcançaram esse ex-cativo morando com os familiares numa casinha de barro nas proximidades das casas de engenho.
10 Ver Flávio dos Santos Gomes. Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Claro Enigma, 2015.
11 Livro de registro de óbitos da freguesia do Outeiro Redondo (1876-1915), fl. 24.

12Libelo civil contra os herdeiros de Fernando José de Queiroz (1874-1891), fl. 17-82.

13 Livro de registro de óbitos da freguesia do Outeiro Redondo (1876-1915), fl. 8v.
14 Libelo civil contra os herdeiros do falecido Fernando José de Queiroz (1874-1891), fl. 106v-107.
15 Livro de registro de óbitos da freguesia do Outeiro Redondo (1876/1915), fl. 19v.
16 Livro de registro de óbitos da freguesia do Outeiro Redondo (1876/1915), fl. 23.
17 Livro de registro de nascimentos do distrito do Outeiro Redondo (1904-1909), fl. 94-94v.
18 Ver entrevista realizada com o Sr. Catarino Felício de Jesus, em 23 de outubro de 2015.

 Obs.: fotos do acervo pessoal do autor

 
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