Sabores do Quilombo da comunidade quilombola de Lagoa Grande

 

Isabel Santos dos Santos

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José Raimundo Oliveira
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O grupo produtivo Sabores do Quilombo está situado na Comunidade Quilombola Lagoa Grande, Distrito de Maria Quitéria-Feira de Santana, no Território de Identidade Portal do Sertão-Bahia.

O nome da comunidade é atribuído a uma lagoa de aproximadamente 6 km, que existiu durante muitos anos. Fornecia água para habitantes do local, e sua fauna de diversas espécies servia como alimento para a população (MENDONÇA, 2014). Mas com o passar dos anos, a lagoa foi sendo degradada e atualmente resta apenas um espelho d’água, porque o solo não retém mais a água.

Quanto à origem dos quilombolas da Lagoa Grande, sabe-se que logo após a abolição da escravatura, entre os anos de 1900 a 1911, “três irmãos, dentre eles Luís Pereira dos Santos, foram morar na Lagoa Grande. Esses irmãos desbravaram o lugar, saindo das origens de Matinha dos Pretos e, após se apossarem de uma parcela de terra propícia ao plantio e com água potável, eles decidiram residir naquelas terras conhecidas por Lagoa Grande. [...]” (MENDONÇA, 2014, p.98).  No entanto, existe outra versão explicando a mudança deles para o local.Relata-se que certo fazendeiro que se havia apoderado das terras da Lagoa Grande - visto elas serem terras devolutas ou da Igreja Católica do São José (por volta do 1900) - solicitou-lhes que viessem da Matinha dos Pretos para "tomar conta" daquelas terras, para virarem cuidadores da propriedade rural, e ali se instalaram e formaram suas famílias. 

Porém, quando se construiu a BR 116 Norte, houve uma separação na área contínua das terras, o que modificou a dinâmica de relações entre comunidades de lado e d’outro, porém não o suficiente para prejudicá-las. Os vínculos simbólicos e de parentelas entre os territórios das comunidades quilombolas Matinha e Lagoa Grande - as comemorações de nascimento e falecimento, casamentos entre moradores de ambas as comunidades; a participação nas festas comunitárias; as celebrações religiosas e também as visitas aos parentes - não acabaram.

Wesley Freire dos Santos

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Portanto, tudo indica que antes da organização da comunidade de Lagoa Grande, boa parte dos seus moradores residiam nas localidades de Cerrado, Balagão4 e Candeal, e que, por encontrar repouso, terra e água em abundância, instalaram-se em Lagoa Grande para (re)construir suas famílias. O “chão” da comunidade quilombola Lagoa Grande possui uma larga história sobre o processo de acesso às terras. E assim como ocorre com outras comunidades tradicionais, esta passa por importantes transformações, sobretudo nas relações com o meio ambiente e sociedades do entorno.

Neste local também se luta pelo direito aos recursos naturais, como água, terra e demais direitos sociais. Ou seja, os aspectos agrários e rurais persistem nas formas de trabalho dos sujeitos do campo, especialmente da comunidade Lagoa Grande.

 

A construção da Associação Comunitária de Maria Quitéria – ACOMAQ


A Comunidade Lagoa Grande possui uma associação comunitária que promoveu as movimentações e o início da formação da 1ª Associação Comunitária do distrito, ACOMAQ (Associação Comunitária de Mª Quitéria), organizada em 1973. Também faz parte da nossa história a Associação dos Pequenos Agricultores do Estado da Bahia (APAEB), fundada em 1979, que na época ofereceu ao pequeno produtor o direito de comercializar os produtos da agricultura familiar sem o custo tributário do Imposto sobre a Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS), o qual era incompatível com a situação econômica dessas famílias produtoras. Com a criação da APAEB, a venda dos produtos, que era feita individualmente, passou a ser realizada de forma coletiva, favorecendo assim, uma maior união entre os membros da comunidade.

A criação da ACOMAQ representa, historicamente, o marco que desencadeou diversos processos de construção política na luta pela garantia de direitos, antes desconhecidos pelos quilombolas e manipulados pela classe dominante. Essa influência despertou a sede de justiça por parte de outras comunidades, desencadeando uma noção de cidadania em toda a região. A noção do “Direito a ter direitos” começou a fazer parte da vida dessas famílias, movidas pela união em torno de interesses em comum.

A última conquista de grande importância aconteceu no ano de 2007, quando a comunidade de Lagoa Grande foi legitimada, a nível nacional, pela Fundação Palmares, como comunidade Quilombola, sendo a primeira comunidade tradicional do município de Feira de Santana a obter tal certificação. Dessa forma, a comunidade vivencia atualmente um novo processo no conhecimento e conquista de direitos dos povos remanescentes de quilombos, estabelecidos no Estatuto da Igualdade Racial.

A denominação “quilombo” na comunidade vem sendo discutida desde 2012, com a aproximação da professora pesquisadora Lívia de Carvalho Mendonça, que defendeu a tese em 2014 sobre Lagoa Grande-Distrito de Maria Quitéria-Feira de Santana. Além disso, outras pessoas têm contribuído para que os remanescentes se inserissem nas discussões sobre o que é ser quilombola, promovendo assim a reafirmação de nossa identidade e de nossa forma de ser e de viver. Pessoas que puderam sair da comunidade para se formar, por exemplo, em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, ou a experiência e a militância constantes, desde menino, do sindicalista José Cassiano, nascido e criado na comunidade, contribuíram significativamente para instrumentalizar a comunidade sobre os processos referentes aos direitos e possibilidades do Quilombo Lagoa Grande, transcendendo suas experiências no campo identitário e nas políticas públicas para nosso povo. Então, no ano de 2012, começam essas discussões e a comunidade em geral se autodeclara quilombola. Consequentemente, a identidade e a ancestralidade são fatores preponderantes para a criação da iniciativa “Sabores do Quilombo”.

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Grupo de discussão da comunidade quilombola Lagoa Grande

Experiências, saberes e sabores no quilombo Lagoa Grande

As comunidades quilombolas possuem um rico conhecimento, seja por sua diversidade em heranças culturais, em lutas, em resistência, ou – e esse é o nosso enfoque – a culinária. Aqui, gostaríamos de compartilhar da visão de Lévi-Strauss que, em sua obra o Cru e o Cozido (1964), interpreta a forma de preparação e o modo de servir uma determinada comida como a expressão de uma identidade, além da manifestação de um “status” de quem lhe serve e de quem come. Ou seja, a comida e os modos de comer expressam significados de um povo. As diversas formas de comer e o modo de preparação de um alimento estão relacionados ao paladar de um povo, ao seu folclore, à imposição de regras e mitos criados em torno do alimento. 

 

O grupo “Sabores do Quilombo” surgiu a partir das experiências socioeconômicas e culturais da maioria das integrantes (90%) na luta pela sobrevivência. São mulheres que vendem acarajés, beijus, massas derivadas da mandioca para bolos, mingaus e cuscuz. Além dessas experiências, elas adquirem o saber das repercussões sobre as relações étnico-raciais da comunidade.

Após o intercâmbio de experiências pelas integrantes, uma delas tomou a iniciativa e mostrou que era possível a continuação da união: formalizou então um trabalho associado, participando das feiras e vivendo coletivamente, repartindo e compartilhando a vivência do trabalho associado.

A primeira experiência coletiva foi a participação na Feira de Culturas do II Seminário Internacional sobre Educação do Campo (2015), que aconteceu na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Esse foi o primeiro contato com a Incubadora de Iniciativas Populares e Solidárias da UEFS. O segundo contato foi a inscrição na Primeira Feira das Inciativas da Economia Popular e Solidária, em paralelo com o Primeiro Congresso Internacional da Economia Popular e Solidária e Desenvolvimento Local (2016), organizado pela IEPS.

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Mulheres quilombolas da Lagoa Grande participando da Feira de Economia Popular e Solidária da IEPS\UEFS.

Desde o surgimento da Incubadora de Iniciativas Populares e Solidárias da UEFS, a metodologia adotada perpassa pela indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Dessa forma, o que prevalece é o diálogo de saberes baseados na educação como prática de liberdade, utilizada na Educação Popular e Libertadora de Paulo Freire.

Desse modo, ao desenvolvermos uma tecnologia participativa, acabamos agregando valores ao modo de produzir e de agir, pois se leva em consideração o saber popular, saber que possui uma essência e que retrata a identidade dos envolvidos, segundo uma visão de Brandão (1996), onde não existe somente uma educação e tampouco só um educador, a educação existe em todos os lugares e em todos os momentos, aprendemos com o professor, a família, os amigos, a sociedade e até com o meio. Destarte, o nosso objetivo é possibilitar que os sujeitos da pesquisa influenciem e sejam influenciados por ela.

Ao se tratar de uma alimentação saudável, onde as matérias primas para elaboração dos alimentos são oriundas da produção quilombola, fica notória a prática da valorização do local, fortalecendo os produtos da sua localidade e região, bem como o seu desenvolvimento. Deste modo, já está se formando e consolidando uma rede de comercialização e produção, trazendo a questão da relação entre rural e urbano, possibilitada pelas Cantinas Solidárias. Contudo, é de fundamental importância considerar o modo distinto de vivência dos sujeitos fazendo com que essa relação campo/cidade se torne possível entre si e não isoladamente. Assim, reforça-se essa “outra economia”,5 sendo esse projeto uma experiência em fase de construção de um resultado concreto que podemos observar na geração de trabalho e renda, bem como na intensificação do intercâmbio entre conhecimento científico e popular no ambiente acadêmico.

Descrição da experiência

A Incubadora de Iniciativas de Economia Solidária da Universidade Estadual de Feira de Santana (IEPS/UEFS) se insere na perspectiva do desenvolvimento e aprimoramento de tecnologias sociais, discutidas sob a ótica da economia popular e solidária. Nesse sentido, constitui-se em um programa interdisciplinar de caráter permanente, que se desenvolve na UEFS por meio de projetos de extensão, ensino e pesquisa. Vários projetos visam à troca de conhecimento direto com a comunidade acadêmica e o saber popular dos grupos incubados. Nas nossas atividades, primamos pela divulgação dos valores e princípios da Economia Popular e Solidária, e pelo fortalecimento das parcerias entre Universidade e comunidade que se mantêm em diálogo constante, com a finalidade de atender conjuntamente os setores mais desprotegidos da sociedade por meio de ações educativas, coletivas, participativas e democráticas.

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Nessa perspectiva, o “O Projeto Cantina II” tem a participação do grupo “Sabores do Quilombo”, que produz e comercializa alimentos na Cantina do módulo I. Esse grupo é composto por 12 pessoas, majoritariamente mulheres pertencentes à comunidade quilombola do distrito de Maria Quitéria, que conta com uma população em torno de 400 famílias que vivem da agricultura e, principalmente, da venda dos produtos derivados da mandioca, o que caracteriza fortemente a identidade cultural da comunidade.

A seleção desse grupo teve um meio diferenciado, porque a triagem antes era realizada com edital público, onde os interessados se inscreviam e eram selecionados de acordo com as etapas efetivadas. Para realizar a seleção do grupo Sabores do Quilombo, seguiu-se um procedimento diferente, começando por uma seleção prévia das comunidades com as características desejadas, compostas de pessoas que se aproximam da incubadora por participarem de ações anteriormente realizadas, como as feiras.

As organizações da IEPS participaram da Feira de Agricultura Familiar, realizada em 2015, e a Feira de Economia Popular Solidária, realizada em 2016. Esse grupo também dialoga diretamente com os pequenos agricultores familiares que residem na comunidade de origem. Com isso, o processo de incubação e articulação da estrutura de comercialização dos produtos da Comunidade Quilombola Lagoa Grande se fortalece, possibilitando as práticas da economia solidária entre universidade e comunidade, com a ampliação das redes de produtos de preços justos e solidários, além da promoção do consumo consciente no ambiente universitário.

Há, contudo, a necessidade da criação de um diagnóstico sazonal e de um calendário agrícola sobre os produtos locais com as beneficiárias da Cantina Solidária “Sabores do Quilombo”, a fim de favorecer o aproveitamento da produção local, tornando os preços mais acessíveis à comunidade acadêmica ao oferecer produtos da época.

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Grupo da cantina

Resultados educativos, políticos e socioeconômicos do grupo produtivo Sabores do Quilombo


Nessa perspectiva das experiências do grupo, foi possível horizontalizar os saberes e valorizar as práticas econômicas e sociais existentes na comunidade. A participação dos intelectuais orgânicos na comunidade, atuando no campo do trabalho coletivo, da economia solidária e das relações étnico-raciais contribui significativamente para o desenvolvimento e amadurecimento do grupo.
Do ponto de vista político, o grupo percebe que é necessário intervir nas políticas públicas, e o Estado precisa ouvir a voz das mulheres que sempre sobreviveram da venda dos seus produtos identitários, sobretudo a tapioca e o acarajé.
Do ponto de vista econômico, o resultado financeiro tem proporcionado um rendimento em torno de 1 salário mínimo mensal líquido, pois as passagens e refeições não são inclusas no resultado.
Acredita-se que a incubadora possa auxiliar no processo de articulação do grupo de comercialização dos produtos da própria comunidade, visto que a possibilidade de trocas de saberes e sabores, entre universidade e comunidade, fortalece as redes de educação para cooperação, e que as experiências da reciprocidade estejam fazendo parte dos princípios do grupo, possibilitando assim, práticas da economia solidária.

As repercussões étnico-raciais na Comunidade Lagoa Grande são positivas, do ponto de vista sociopolítico. Reavivamos as discussões por conta da afirmação da identidade de alguns sujeitos da comunidade, e isso possibilitou a autoafirmação coletiva e a valorização das práticas tradicionais, como a produção de alimentos feitos artesanalmente, a pesca artesanal e atividades culturais, como: as rezas, os sambas, as batas de feijão, as tranças de cabelos, a capoeira, o artesanato e a auto-aceitação do jeito de ser, vestir e comer.

Além disso, a comunidade passou a ter acessos às políticas governamentais de educação (bolsas quilombola - governo federal); e acesso à água (Programa de Cisternas de Consumo do governo federal), mesmo sabendo que ainda falta muito. Também, politicamente, a Comunidade Quilombola Lagoa Grande foi responsável pelos diálogos sobre a Lei 11.639\2003 no Município de Feira de Santana-BA, em parceria com a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, onde tivemos a primeira Formação Continuada para professores da Rede Pública sobre Educação Escolar Quilombola (2014-2015), inserindo nesse processo de formação as lideranças comunitárias.

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1 Bolsista IESPS\UEFS\CNPq, professora do ensino profissionalizante no Estado da Bahia e integrante do grupo Sabores do Quilombo. E-mail: isaagronomia@gmail.com.

2 Bolsista Voluntário da Incubadora de Economia Popular e Solidária, graduando em Engenharia de Alimentos, Universidade Estadual de Feira de Santana, e-mail: wesley.f.engal@gmail.com

3 Departamento de Ciências Sociais, Universidade Estadual de Feira de Santana. E-mail: joseraimundouefs@hotmail.com

4 Comunidades que nos anos 1900 deram origem a Matinha e Candeal (hoje atual Distrito da Matinha).

5 Os processos de formação de trabalhadores pressupõem a apreensão dos fazeres e saberes do trabalho que se tecem na cotidianidade do processo de produção (propriamente dito), tanto nas empresas sob a direção do capital como nas organizações econômicas de iniciativa popular, seja em busca da sobrevivência imediata, seja em busca de fortalecer uma “outra economia" (TIRIBA, 2008, p. 74).

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REFERÊNCIAS

Carlos Rodrigues Brandão. O que é Educação. São Paulo. Brasiliense, 1996.
Claude Lévi-Strauss. Mitológicas I - O cru e o cozido. R.J. Cosac e Naify, 2004.
José Raimundo Oliveira Lima. “Economia Popular e Solidária e desenvolvimento local: relação protagonizada pela organicidade das iniciativas”. Revista Outra Economia. Nº 18, v.10, p.3-17 - 2016.
Lívia de Carvalho Mendonça. Escrevivendo escrita de remanescentes quilombolas no domínio escolar e na vida cotidiana: uma abordagem dialógica. Tese ( Doutorado), Faculdade de Letras PUC-RS, 2014.
F. Pita, José Raimundo Oliveira Lima, C. E. S. “Normatizando solidariedade: experiência de construção coletiva de regras de uma cooperativa informal de Economia Solidária”. Outra Economia, v.9, p.69 - , 2015.
Juana M. Sancho (org.). Para uma tecnologia educacional. Porto alegre: Artmed, 1998, p. 23-49.
Lia Tiriba. “A cultura do Trabalho, autogestão e formação de trabalhadores associados na produção: questões de pesquisa”. In: Perspectiva, Florianópolis.V. 26, n. 1., pg-69-94, jan. 2008.

 

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